Leituras do Olhar
Vamberto Freitas,escritor açoriano
Realizou-se em Maio o colóquio anual da Câmara Municipal do Funchal, sob o lema “Leituras do Olhar/Words in the Eye of the Beholder”. Olhares cruzados, juntou escritores, poetas, pintores e professores universitários das mais dispersas geografias, línguas e tradições adentro e fora da Europa. Falou-se de literatura, cinema, artes plásticas e gráficas. Como já é habitual neste encontro da Madeira, outras ilhas atlânticas estiveram também representadas, muito especialmente os Açores e as Canárias. Falar de cultura “nacional” ou “regional” já faz pouco sentido se não nos enquadrarmos em contextos mais vastos, hoje diariamente na mais íntima convivência e diálogo. Eis aí o lado positivo da globalização em curso: o aconchego irreversível entre todos os povos, o enriquecimento de visões e obras que cada um poderá facilitar ao outro. A retomada da noção de “universalismo” não tem necessariamente de nivelar, e muitos menos aniquilar, seja quem for. As culturas “nacionais” não vão desaparecer, mas têm de redefinir-se no diálogo constante frutífero com todos os outros que partilham instantemente uma sorte comum, um mundo comum. O “choque do reconhecimento” de que há muito falava Herman Melville nos Estados Unidos é-nos agora uma realidade preciosa. Nada disso vai terminar com muitos dos conflitos desta nova era, mas tornará cada vez mais difícil as justificações históricas da belicidade empurrada por interesses económicos, quase sempre alheios à vasta maioria dos povos. A Grande Europa significa isso mesmo, por entre todas as nossa diferenças, encontrar partilhas e enriquecimentos mútuos é o novo rumo da história. Gritar contra isto de pouco valerá. Se a história não chegou ao fim, chegou a esta etapa em que o esbatimento das fronteiras é imparável, pelo menos entre todos os que, desde há séculos, partilham um destino comum mas negado pelas tentações hegemónicas cada vez mais irrealizáveis ou permitidas. A arte dos nossos dias é isso mesmo: o eclectismo da beleza em mosaico, do labirinto arabesco, também, em que a figura humana está subentendida na beleza dos nossos traços harmoniosos. As ilhas, como outros já escreveram, foram sempre como que metáforas vivas e actuantes dos grandes continentes. Não são meros apêndices ou “adjacências” redutoras e inconvenientes. É aqui que o Homem se vê integralmente e por múltiplas perspectivas, num todo instantâneo, que porventura permite uma visão mais completa. As ilhas poderão vir a ser esse refúgio de estudo e experiências. “Ilhas” são, afinal, todos os territórios a quem a História tradicional de séculos havia roubado a sua dignidade, havia negado a sua inteireza de membros da comunidade mundial. O modernismo literário europeu, relembremos, foi criado não somente nos grandes centros metropolitanos cheios de si, mas nas mais “obscuras” geografias humanas e culturais. Joyce passeava-se em Dublin, durante os seus primeiros anos, enquanto Pessoa delirava num ou noutro café lisboeta. Em Nova Iorque, meia dúzia de “loucos” isolados e desprezados numa aldeia chamada Greenwich Village fazia o mesmo para a arte do Novo Mundo. A insularidade não encerra, necessariamente: abre e torna possível essas meditações duradouras e universais da condição humana.
O colóquio do Funchal abordou um pouco de tudo isto, e algo mais. Reconheceu que entre as ilhas atlânticas, particularmente as da Macaronésia, chegou a hora de nos reconhecermos mutuamente, e, apesar de histórias e tradições diferenciadas, retomarmos e cultivarmos o que nos pertence: uma rica geografia e um destino agora cada vez mais entrelaçados adentro da União Europeia. Os antigos “centros” desfazem-se pela força da História, dando lugar a outros “centros”, talvez bem mais democráticos e culturalmente esclarecidos. O poder sem ressentimentos ou preconceitos nacionais poderá ser-nos benéfico na medida em que reconhece pela primeira vez na história que a riqueza humana e cultural reside num mosaico feito das mais antigas culturas e cosmovisões. As ilhas poderão contribuir para este aconchego real e metafórico, permitindo a reflexão constante sobre a totalidade do nosso ser e modos de estar. Significativamente, a sugestão vencedora para a temática do próximo ano veio de um reconhecido poeta e crítico lisboeta, Fernando Pinto do Amaral: “Arquipélagos do Desejo”. Alguma literatura, nossa e de outros, será vista através dessa perspectiva polifónica, que move e comove as nossas tradições artísticas, portuguesa, europeia, continental e insular.
Obrigado a Maria Aurora Carvalho Homem, organizadora do colóquio do Funchal, cada vez mais aberto a todos os olhares insulares e continentais.
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Crédito fotos:Jacarandás,Funchal de Urbano Bettencourt,2006