(O Botânico – Mário T Cabral)
LER
Mário T Cabral, 13 de Julho AD 2014
Quem leu, nos últimos tempos, um livro, de fio a pavio? Muito poucos, incluídos os alunos – aqueles alunos que não conseguiram aldrabar a obrigação da leitura; aliás, como seus pedagogos (à grega), que não se espere que os professores leiam mais do que aquilo que já leram, também por dever, sem nenhuma mestria singular. Perto das férias, entra-se numa livraria, agora é que é, diz-se que se vai ler este romance, aquele ensaio… mentira, se lerem os jornais será online, e já é muito; e, caso se atrevam ao papel, que seja coisa pechinchinha, nada que ultrapasse dez minutos. Ah, comprou-se também um livro para oferecer, pois os outros têm tempo e ler é uma boa prática.
É fácil provar que ler é uma boa prática; há consenso, neste ponto. A questão está em saber porque é que ler se tornou um tabu, isto é, uma espécie de ir à missa para quem, no silêncio do seu interior, já não acredita em Deus. A leitura nunca foi ocupação de muitos, mas não havia este constrangimento contemporâneo que deriva, principalmente, daqui: ler interessa a pouquíssimos, ler torna as pessoas mais inteligentes e poderosas, ou seja, ler é coisa de elite, em tempo democrático. Pior: esta elite nada tem a ver com o dinheiro pois, ao contrário daquilo que se diz, os ricos não leem, e os pobres podem muito bem ler. Quem tem dinheiro pode comprar títulos nas melhores universidades… mas não é disto que se está a falar. Em tempo capitalista, materialista, ler é uma provocação do espírito, liberdade muito próxima da religião, com efeito.
Aliás, há muitos estudos que provam que as pessoas já não sabem ler. Uma coisa é juntar letras, palavras e frases, outra é ler: distinguir uma ideia de um exemplo, compreender uma analogia, identificar a ironia, seguir uma deambulação mental nova, um outro itinerário neurológico, isto é, de maneira mais simples, um outro sentido da narrativa… nem vale a pena referir a intertextualidade, o embaraço que causa ver especialistas não reconhecerem o piscar de olhos do escritor! A coisa é muitíssimo mais grave: a geração online lê duas linhas ou três, a partir das quais clica noutro cookie. Fora de brincadeira: não conseguem manter a atenção por dois parágrafos – uma página cansa-os mais do que cavar! É um susto, uma doença, um handicap, como outro qualquer. Aliás, o cancro tinha começado com a televisão, onde tudo é básico e passivo. Um destes dias há de ficar provado cientificamente que a televisão provoca Alzheimer. Já é sabido que escrever à mão, recusando o teclado, desenvolve mais o cérebro, tal como ler em papel. Nada disto é reacionário! São factos. Cada coisa tem o seu lugar. Tem a ver com salvar a Humanidade, dar-lhe, de novo, asas, ar puro, inteligência.
Com tudo isto, continua a ser um enigma, esta insistência obsessiva na leitura, por todo o mundo ocidental. Antigamente era ao contrário, veja-se o caso das mulheres, que muitos temiam viessem a ser instruídas – olha no que deu! Será uma questão de negócio, para vender mais livros, que tudo é negócio, neste tempo, e vai de escrever abjeções que os amantes da leitura não suportam, capas com letras em relevo, douradas sobre branco, com autores televisivos, com referências de jornais de nomeada (a propósito: ainda os há?). Ou será para disfarçar a ineficácia da educação de massas, visto que não bate a bota com a perdigota? Pudera, falta o cume! Tudo vai desmoronar-se, sem o Zénit.
Quem gosta efetivamente de ler abomina este circo pagão. Tranca-se e lê.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007.
Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.
Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.