LÍNGUA
Todo o corpo é um milagre de perfeição, mas há de haver poucos órgãos com a excelência da língua. Este pequeno membro pode ser um músculo; porém, dizer que é apenas um músculo é não perceber nada de nada. Outras partes exercem múltiplas funções, numa expressão de economia de meios que espanta; contudo, qual, como a língua, nos faz saborear o mundo, ao mesmo tempo que revela o estado da nossa saúde física e, principalmente, nos permite a expressão da alma?
Não pensamos muito no milagre que consiste em descodificar sentido nos sons causados pelos movimentos da língua. É tão natural e diário que passa desapercebido. A melhor forma de nos apercebermos deste prodígio é ouvirmos falar uma língua estrangeira da qual não entendemos patavina, vamos dizer, o mandarim. Como é possível que alguém comunique com aqueles estalos? Há que ter presente que, por exemplo os cães chineses e os portugueses, entendem-se, e os humanos não, o que é prova de supremacia nossa.
Diz-se que “traduzir é trair”, e isto quanto mais refinada é a mensagem, vamos dizer a poesia. A matemática, a lógica e a música podem ser universais; todavia, há sentimentos e ideias muito difíceis de expressar numa língua estrangeira. E quão gracioso é colocar uma pessoa no espaço geográfico de um país, pelo sotaque, mal ela abre a boca? A língua é o órgão mais patriótico de todos. Há que levantar a hipótese de o pensamento ser influenciado pela maneira de falar: pelas expressões idiomáticas, por exemplo; ou pelas corruptelas, ao longo dos séculos. Fazer a história de uma palavra, desde o Latim até à atualidade é… ficar de boca aberta. Haja em vista o “discreto”, no sentido açoriano.
Consegue-se saber, à distância, pelo telefone, se fala uma criança ou um velho, um homem ou uma mulher, um branco ou um negro. Consegue-se perceber se a pessoa está nervosa, comovida ou a mentir. E que dizer do canto? As aves também cantam, mas o superlativo volta a ser humano: Pavarotti em “Una furtiva lagrima”; a Callas em “O mio bambino caro”; o canto gregoriano todo… enfim… não há palavras!
Dito isto, seja introduzida a carta de S. Tiago, onde o apóstolo afirma que o ser humano que não controla a sua língua não controla todo o resto do seu corpo. Ele compara com o freio nos cavalos, e sabemos que está coberto de razão, pois a língua pode ser uma serpente venenosa, que mata em segundos. Há de haver no corpo poucos membros tão virulentos. O caminho da perfeição passa pelo silêncio, pois que, na maior parte das vezes, quando falamos, procuramos justificar-nos, atribuindo, deste modo, a centralidade do juízo aos homens, e não a Deus. Basta pensar em Jesus Cristo que, diante de Pilatos, Ele, que é o Verbo, optou por ficar mudo. Dizer o quê? Como entrar naquela lógica perversa?
Conta-se que, certa vez, S. Domingos visitou S. Francisco e que ambos não trocaram uma palavra durante todo o encontro. Pode ser apenas uma lenda, mas está muito bem caçada. Faz lembrar “O Mestre”, de Santo Agostinho. Contudo, há que contrapor o livro de Coelet, onde o sábio garante que “Há tempo para falar e tempo para ficar calado”. E o salmista também garante que apregoou a justiça divina na grande assembleia, sublinhando que não se manteve calado, como os embusteiros. E os anjos estão eternamente a cantar: “Kadosh, Kadosh, Kadosh”.
Não admira que Deus seja o Verbo, que no princípio fosse o Verbo, que a hóstia seja transformada pelo poder da Palavra de Deus. Fiat!
Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.