LISBOA EM ARCO
O arco. A minha visão de Lisboa distende-se agora, em arco, sobre o corpo da cidade: contempla o dorso, depois a paisagem em abstracto, finalmente a vida que sobre ela passa, sendo apenas o tempo da alba, a estrela da manhã, o dia que se anuncia após a noite de Lisboa. Em arco se alarga a toda a extensão deste anfiteatro de ruas, casas, muros e espaços em declive. A minha visão percorre, de uma ponta à outra, a parte que suavemente ondula, que por vezes se eleva um pouco mais no azul do firmamento, prolongando-se depois para além dos limites da cidade. É uma visão de luz e sombra, um jogo, um modo de observar como a multidão das cores de Lisboa transita da sombra para a luz, e também uma forma de ver como as coisas (todas as coisas) por dentro se iluminam; de ver como afinal nelas se produz toda a mudança. A claridade é um movimento, uma passagem do tempo – não o desta gente que desde sempre mora em Lisboa e nunca pensa nessas coisas, mas antes aquele tempo que a nós unicamente pertence, sendo ele a medida, a dor, a natureza e a separação do que somos daquilo que vivemos.
Há qualquer coisa de íntegro nas ruas que sobem até esta metade de céu – esta metade de céu que lhes dá cor, beleza e altura, mas da qual, todavia, logo descem as ruas para o lado de lá, um pouco mais longe do mar e já bem dentro da terra. É onde moram a pobreza o esquecimento a ignorância, por vezes também a ignomínia das gentes de província, o que há de secreto na periferia de todas as cidades do mundo e que não convém ser visto nem mostrado aos que vêm de fora.
E há as casas. As casas, as casas.
Sim, as casas de Lisboa possuem uma espécie de concretude partida ao meio, entre o real e o onírico. Metade da sua realidade consiste naquilo que nos é quotidiano, feito da nossa razão e à nossa medida: a idade, as coisas que nos afrontam ou nos dão prazer – os trabalhos e os dias, a estranheza e a familiaridade de tudo o que se pode tanger, tocar, possuir. A outra metade tem a dimensão do sonho: por exemplo, esta ideia de ver Lisboa em arco, na diagonal do meu ângulo de visão, e imaginar uma cidade em repouso e em suspensão, dentro e fora de si mesma. Exactamente como nos sonhos.
Por vezes, sonho que Lisboa não existe, como se fora apenas uma lenda que se pode contar não aos que nela vivem, e sim a quem a ela chega de visita. Mas como também eu vim de fora, creio-me sempre muito mais na condição de um habitante da fé e da alegria, do que na daquele que mora em paz com a sensatez do seu conhecimento da cidade. Nunca sei se nela vivo ainda os anos da minha vida, ou se já por hipótese morri no tempo que passou por Lisboa. É um facto que em tudo, em toda a parte vagueio sempre entre o presente e a memória. Olhar a cidade é como incorrer numa mistura de tempo e lugar: sou eu quem lança o aviso de perigo e os pedidos de socorro à navegação, aquele que escreve com minúcia o seu diário de bordo, o que põe seu cursivo na caligrafia, cuidando de fazê-lo só com o escrúpulo da consciência e da razão – sem nenhum propósito de ter por arte o que chamam veia, estro, estesia, exercício de estilo…
Para mim, Lisboa são os barcos e os adjectivos.
Navegar indistintamente, entre a mentira e a realidade, e entre a visão e a invisibilidade, sem conhecer a nitidez nem a consciência de nada; dizer que a cidade só existe pela imaginação e por escrito, apenas como invento, desejo e expressão de literatura. Assim, em arco. Na evidência do que paira sempre muito acima desta mentira que se chama tempo, espaço, espaço-tempo, barco ou rio. Cidade de Lisboa. A ilha de pedra entre o azul do céu e do mar.
Não, o Tejo não é um rio. Por causa dos barcos que outrora chegavam (mas que há muito deixaram de vir e largar dos mil portos de Lisboa), o Tejo não é senão um mar em pequeno, um istmo que vai acima e que depois regressa do interior de si mesmo – subindo ao contrário de todos os rios, de jusante para montante, sendo a sua base justamente este arco de cidade, quando se vem do sul, da vastidão da planície alentejana, do tempo da imensidão da nostalgia. No princípio do dia. No fim da minha noite portuguesa.
Eu vejo os barcos parados nas docas. Eles já não estão lá, é certo. Mas vejo-os ainda no cenário do tal rio que não é. Ou seja, creio vê-los com a imaginação. Desde Pedrouços ao Poço do Bispo (nomes que já em si contêm o assentimento da literatura), passam todos os cais. Alguns outros lugares e nomes: a doca do terreiro do trigo, a doca da marinha, o cais das colunas, o cais do sodré, a gare marítima de alcântara, a gare da rocha do conde de óbidos… “Os navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios”, escreveu o poeta Eugénio de Andrade. Porque há os barcos que ondulam na minha memória. E há os que vogam continuamente entre duas margens: de Lisboa para Cacilhas, Porto Brandão, Trafaria, Barreiro ou Montijo – e volta.
Não sabem como são os barcos de Lisboa ?
A metalurgia da paisagem. Não a dos guindastes; mas os cascos, as chaminés, os mastros. O abandono. O esquecimento. Os adjectivos. As próprias casas dos barcos passam através da paisagem. Não sei ver nem amar a beleza a tranquilidade a minha visão da cidade sem pensar no sentimento na viagem na metalurgia, entrando neste movimento de convergência de fora para dentro. Saibam que vim pelo tempo e pelos barcos. Vim conhecer o mar, o infinito. O azul, a mitologia do céu e do mar. Disse adeus aos mitos todos da infância: o povoamento a paisagem a agricultura os nomes o conhecimento dos pássaros o trabalho o campo e a lida, a minha condição de homem filho de um povo. Não vim só para viver em Lisboa, mas para de mim me perder por Lisboa. E para nela me perder por amor.
Nota: O texto acima integra o Capítulo de Abertura do seu livro “O Homem Suspenso” (1996).