Literatura açoriana: aquela geração de 40 **
Urbano Bettencourt
Há um texto de Pedro da Silveira, de cujo título o meu subtítulo é descaradamente devedor, em que o poeta das Flores procede a uma evocação do que foram os anos 40 do século XX em Ponta Delgada, do ponto de vista literário e cultural (i). Evocação, história, reencontro de nomes e vozes de um daqueles momentos-chave da cultura açoriana, e no âmbito de um certo rotativismogeográfico que a marcou, pelo menos durante algum tempo histórico.
O título de Pedro da Silveira é mais ou menos cauteloso, pois escapa-se a uma caracterização específica e deixa ficar uma referência cronológica suficientemente genérica para se permitir um quadro histórico o mais abrangente possível. Falar de geração poderá ser mais arriscado, pelos contornos esquivos do conceito e mesmo pela consciência e perspectiva que tinham dessa dinâmica pontadelgadense os próprios participantes e artífices (ii). Na verdade, se a idade pode ser um dos critérios para falar de geração, importaria definir a amplitude temporal que a circunscreveria, analisando ainda a noção pessoal de pertença ou não a uma geração; neste caso, entrariam em jogo factores como afinidades ou proximidades estéticas, convergências ou divergências em relação ao grupo etário. Para o caso presente, interessaria ainda ressalvar que, embora dando sinais de vidapela década de quarenta, sobretudo a nível da imprensa, esta geração só se afirma de forma definitiva em livro a partir do início da década seguinte.
Tendo em conta todos esses aspectos, o que importa realçar para lá de tudo é a existência, em Ponta Delgada, de um conjunto de jovens (uns mais do que outros, biologicamente) que partilham um determinado momento histórico, têm em comum um quadro de referências estéticas e literárias e o propósito de intervenção e de afirmação literária num espaço social e cultural (também geográfico) bem definido. Ainda há dias, em conversa com alunos do ensino secundário da Escola Antero de Quental, eu chamava a atenção para esse facto: em 1946, um grupo de jovens pelos 17 ou 18 anos de idade (iii), alunos do então Liceu de Ponta Delgada, propunha-se mexer com a cidade em termos culturais, limpar as teias de aranha literárias que atravancavam o espírito e o gosto do tempo, num projecto de renovação que tinha o(s) modernismo(s) como ponto de referência. É certo que eles não começavam do nada. Cerca de três anos antes, o Dr. Ruy Galvão de Carvalho já escrevia sobre a poesia modernista e sobre ela fazia palestras de “introdução”, uma delas no Liceu e em que se empenhara na demonstração de que a poesia modernista é uma poesia de inquietude metafísica de «consciencialização da vida interior». Ocupara-se explicitamente de Orfeu e da Presença e ilustrara as suas palavras com exemplos concretos, a tentar afeiçoar os «ouvidos burgueses dos tradicionalistas» (como diz um jornal da altura).
De resto, sobre esses anos, importa ter em conta o depoimento do poeta português Egito Gonçalves, que, na sua condição de militar expedicionário, esteve em Ponta Delgada entre 1942 e 1944 e viria a reconhecer mais tarde a importância e o papel desse tempo na sua formação e mesmo no despertar da sua vocação literária.
«Tive a sorte de ser “expedido” para S. Miguel onde me foi dado conviver com alguns dos escritores de Ponta Delgada. Estive ali dois anos e, transitando pela cidade, ou enchendo os olhos pelas estradas de Nordeste aos Mosteiros, frequentando o “Bureau de Turismo” que me fornecia as últimas novidades em livros, eu ia crescendo… (…) sei quanto devo, na minha formação, aos dois anos que ali passei… trouxe dos Açores um acréscimo de cultura, o interesse por coisas que antes desconhecia, e os olhos cheios de uma paisagem inesquecível» (iv).
E, dentre os seus mentores ou padrinhos literários, referia Egito Gonçalves os nomes de Armando Côrtes-Rodrigues, Diogo Ivens, Ruy Galvão de Carvalho e João da Silva Júnior, que, não sendo um escritor, sempre esteve ao lado deles, enquanto divulgador atento das suas obras e livreiro que também era, mediante o seu Bureau de Turismo. Sobre o sentido geral desse tempo, a sua dinâmica e a sua projecção, interrogava-se ainda Egito Gonçalves: “sempre uma incógnita insolúvel me perturbou: se os acasos da sorte não me tivessem levado para Ponta Delgada, o que teria sido? Como poderia a literatura ter surgido, se surgisse?” (v)
Podemos dizer que esses jovens souberam aproveitar o caminho que lhes surgiu ou foi proposto, mas juntaram a isso a curiosidade intelectual e cultural que os fez procurar noutros meios e linguagens aquilo de que precisavam para compreender o seu próprio mundo e interpretá-lo – coisa digna de realce quando se sabe que, por esse tempo, era fácil acomodar-se à rotina dos dias e dos tempos. Mas deve também registar-se que, mesmo vindo contestar uma ordem literária estabelecida, esses jovens tiveram ao seu dispor alguma imprensa de Ponta Delgada, sobretudo o Correio dos Açores, no início, e depois A Ilha, que ficaria indelevelmente ligada à dinâmica e à imagem da «geração de Ponta Delgada».
Uma entrada do diário de Fernando Aires (1928-2010), precisamente um dos jovens de 1946, evoca esse tempo e os propósitos do grupo:
«A rever fotografias de há quase cinquenta anos. O grupo do Jade em casa do António Canavarro, na Rocha Quebrada (Pópulo). Está o Jacinto Albergaria, está o Eduíno [de Jesus], o Eduardo Vasconcelos Moniz (o sujeito que o havia de assassinar ainda não tinha nascido). Estou eu. É o grupo fundador do Círculo Literário Antero de Quental que, pelos anos 40 (mais precisamente, 46), se arvorou em mentor do movimento modernista a introduzir na Ilha e se destinava, por definição, a acabar com o conservantismo que estagnava as letras açorianas. Em 48 junta-se-nos o Carlos Wallenstein, o Rui-Guilherme de Morais, Mário Barradas, Machado da Luz, tudo rapazes frequentando ainda o Liceu de Ponta Delgada. José Enes, Dias de Melo., Madalena Férin, gente de nome feito, vêm dar credibilidade ao projecto. Naquele tempo vivia-se no Estado Novo. O que cheirava a novidade, cheirava a subversão, que era sinónimo de comunismo. Assim, éramos elementos suspeitos, «espíritos imbuídos de ideias perniciosas», como se dizia de nós. O Eduíno, por exemplo, já com o seu diploma do magistério primário, chegou a ser ameaçado por um senhor influente da cidade: “Pois fique vossemecê sabendo que lhe tiro o pão, ouviu? Tiro-lhe o pão!” – disse-lhe o tal senhor.» (…) Era assim naquele tempo em Ponta Delgada – burgo tristonho, com seu Aterro à beira-mar, seu Cais da Alfândega com alguma coisa de “mediterrânico” em sua alacridade e animação de vozes marítimas, seu cheiro a maresia. Seus brilhos de cal. Por ele se ia às Portas da Cidade e se deixava a Ilha com destino a Oeste. Porque a cidade, à noite, era mais escura em suas ruas e praças, a Lua era maior, o luar mais claro. A prata no mar, abundante. E porque eram raros os carros de motor, ouvia-se o silêncio, o marulhar das águas no porto. Sentia-se o aroma das petúnias na noite que vinha do jardim do castelo, dos canteiros do coreto de São Francisco, onde, nas tardes de domingo, a banda militar era escutada a tocar a Sinfonia Incompleta de Schubert, o primeiro andamento da 5.ª Sinfonia de Beethoven (…)» (vi)
A citação, demasiado longa talvez, vale pelo testemunho geracional que nos deixa sobre o espírito que animava o grupo, mas também pelo acolhimento que o grupo recebe por parte de outros nomes, alguns dos quais eram já figuras de relevo na cultura açoriana. Mas vale ainda pela referência à mo
ldura social e política desses tempos e de que nos chegam, por outras vias, informações sobre «a cidade cinzenta» (título de Dias de Melo) e o regime de policiamento das ideias e dos comportamentos. E vale, finalmente, pelo modo evocativo muito próprio do diarista, configurando por uma escrita miúda o perfil íntimo da cidade, as suas vivências e gestos, os rumores e silêncios, as suas práticas sociais – na consciência de que nada fará regressar o passado e só uma melancolia contida é capaz de encará-lo de frente sem dramatismos nem desesperos. E esta é já uma forma de registar alguns dos traços que viriam a discursividade e o registo dos cinco volumes do diário de Fernando Aires.
(Continua 2/2)
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Urbano Bettencourt,natural da Piedade,Ilha do Pico. Vive em Ponta Delgada,Ilha de São Miguel. É professor,ensaísta,poeta. Sua produção literária é profícua e de mérito reconhecido. Seu mais recente livro “África Frente e Verso (Letras LAVAdas,2012) traz a sua marca de escritor de grande sensibilidade na prosa e na poesia, comprometido com a realidade social de sua terra açoriana e lusitana, com a história e a geografia de toda uma geração que guarda as cicatrizes de uma guerra colonial que hipotecou sonhos de uma geração e ainda hoje machucam. Um livro que precisava sair e veio à tona como um verdadeiro testamento.
Notas:1. O artigo foi originalmente publicado no Jornal Mundo Açoriano,edição de 30 de março de 2012. http://www.mundoacoriano.com/index.php?mode=noticias&action=show&id=272
2. fotografia tirada no jardim em frente ao Liceu Antero de Quental,Ponta Delgada, em Abril de 1946.
Os nomes em itálico são dos elementos que pertenciam ao Círculo Literário de 40,segundo informa Maria João Ruivo que cedeu a foto.
3.Jacinto Soares de Albergaria e Fernando de Lima com o professor Ruy Galvão de Carvalgo (ao centro).Acervo Família F.Lima.
4. Foto do Urbano Bettencourt é de autoria de Sara Bettencourt.