A designação «grupo do Jade» faz apelo a um outro vértice, ou seja, o local de encontro e tertúlia, e que se vem juntar ao Circulo Literário e ao jornal A Ilha para completar os três vértices do triângulo por onde, sumariamente, se poderá avaliar a actividade do grupo.
Numa entrevista concedida a Álamo Oliveira e publicada no Suplemento «Quarto Crescente», Eduíno de Jesus aprofundou os dados sobre a situação literária açoriana nos anos quarenta, bem como os propósitos do grupo a que pertencia:
«Os nossos objetivos eram, por um lado, acabar com o ostracismo a que estavam votadas nos Açores a literatura e as artes modernas, não obstante o prestígio que tinham nas letras (por se ignorar ou fazendo-se por ignorar a sua obra «modernista») autores como Armando Côrtes-Rodrigues e Vitorino Nemésio e o contributo dado à modernidade no campo das artes plásticas por Canto da Maia, Domingos Rebelo, Albuquerque Bettencourt, António Dacosta, e, por outro lado, encontrar, pela teoria e na prática a identidade (se a tinha) de uma literatura propriamente açoriana, seguindo o exemplo de Cabo Verde e na peugada de Roberto de Mesquita, Vitorino Nemésio, etc. Não foi fácil. Naquele tempo, a palavra «Modernismo», nos Açores, ainda cheirava a enxofre e pronunciá-la era como anunciar a 8.ª praga do Egito, e quanto a ideias «nativistas», mesmo só no âmbito da Literatura, sustentá-las era concitar a suspeição de antipatriotismo, um pouco como hoje, é certo, mas com a agravante de que, naquela altura, se indistinguiam os conceitos de «pátria» e «Estado Novo», do que resultava as ideias «nativistas» serem tidas por abjurantes do tabeliónico «repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas» (vii).
As referências de Eduíno são claras: a modernidade nas artes plásticas e na literatura, o exemplo (a lição, dirá Pedro da Silveira) colhido noutro espaço insular, o cabo-verdiano, a proposta de uma reflexão teórica que, acompanhando a prática literária, indagasse a possibilidade e os termos de uma literatura açoriana. Em suma, tratava-se de um projecto que articulasse as expressões estéticas da modernidade com uma reavaliação da tradição açoriana em várias dimensões (a poética de Mesquita e o enquadramento da literatura açoriana, uma questão que vinha já desde meados do século XIX e atravessava praticamente o século XX até àquele momento). Sob um outro ângulo, o que aí se configurava era a construção de um projecto cultural e literário assente numa dinâmica de exterior-interior, não numa atitude de simples imitação, mas de incorporação e transformação de acordo com as condições do próprio espaço.
Aos modernismos português e cabo-verdiano, referidos por Eduíno, importa ainda acrescentar o modernismo brasileiro da Semana de Arte de 1922 como um dos modelos mais presentes no horizonte do grupo.
A vertente cabo-verdiana deve muito ao empenhamento de Pedro da Silveira, que desde 1945 vinha publicando n’A Ilha textos de escritores daquele arquipélago, paralelamente a recensões críticas e documentos de natureza diversa. A “descoberta literária” de Cabo Verde por parte de Pedro da Silveira faz-se, em primeiro lugar, através de Jorge Barbosa e do seu livro Ambiente (1941), mas não é separável do seu conhecimento da realidade social, geográfica e histórica daquele arquipélago africano. Pedro da Silveira detectava a existência de afinidades entre os Açores e Cabo Verde, até mesmo nas condições históricas que, nos séculos XVIII e XIX, levaram açorianos e cabo-verdianos a encontrar-se a bordo das baleeiras americanas que demandavam o Atlântico Norte; este facto motivaria ainda o destino comum de uma faixa da emigração dos dois povos para os Estados Unidos da América. E aquilo que mais chamava a atenção do poeta açoriano era o modo como os poetas de Cabo Verde davam a “lição” de uma escrita fiel ao seu tempo e ao seu lugar, ao drama do homem no seu contexto concreto e específico, exemplo tão mais significativo quanto é certo que a renovação operada pelos escritores da Claridade se processara num espaço físico em que, à primeira vista, as condições materiais para a sua realização não seriam as mais adequadas. No caso particular do livro de Jorge Barbosa, a sua novidade estava em “retratar a miséria e o abandono dum arquipélago também ele atlântico, que, pondo de parte certos aspectos ligados com o ser crioulo, parecia ser o próprio espelho da realidade açoriana” e das suas condições sociais naquela década de quarenta, como confessou Pedro da Silveira a António Cândido Franco (viii). Daí, portanto, o seu empenhamento em divulgar a nova literatura de Cabo Verde e em trazer para as páginas d’A Ilha os próprios autores.
Para esta tarefa, contou com a colaboração de João de Deus Lopes da Silva, irmão do escritor Baltasar Lopes e comandante da marinha mercante, que nesses anos desempenhou um papel importante na ligação entre os dois arquipélagos, e a quem o próprio Pedro da Silveira entrevistou para A Ilha (02/02/1946). O comandante Lopes da Silva, ele próprio autor de algumas experiências literárias vindas a público no jornal açoriano, trouxe para as suas páginas os novos autores das suas ilhas, cujos textos, em conjunto com os de Pedro da Silveira e de outros, asseguraram a presença cabo-verdiana durante uma década, aproximadamente (1945-1954): aí encontraremos nomes como os de Manuel Lopes (a residir nesse tempo no Faial), António Nunes, Pedro Corsino, Aguinaldo Brito Fonseca, Carlos Alberto Monteiro Leite, Gabriel Mariano, entre outros; e até o próprio Amílcar Cabral surgiu nas páginas d’A Ilha (22/06/1946), ainda não na qualidade de líder político que viria a ser, mas com um poema intitulado precisamente “Ilha”.
Sobre o impacto do modernismo brasileiro, são conhecidos alguns depoimentos de Eduíno de Jesus, que insistem no «deslumbramento» que foi tomar conhecimento da poesia de Manuel Bandeira e, sobretudo, assistir ao desconforto que a sua leitura em voz alta provocava no auditório do Bar Jade.
Que balanço fazer da actividade do «grupo do Jade» ou «grupo d’A Ilha»?
Em primeiro lugar, avaliá-lo por aquilo que foram as actividades desenvolvidas no seu âmbito e de que A Ilha constitui um bom registo informativo: basta referir as Conferências por ele promovidas, os recitais de Carlos Wallenstein no Cine Jade e no Liceu, trazendo ao conhecimento do público micaelense a moderna poesia de língua portuguesa. Lá estão, nos recitais de 19 e 23 de setembro de 1949, nomes como os de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Andrade, Vitorino Nemésio, Violante de Cisneiros/Armando Côrtes-Rodrigues, José Régio, Miguel Torga, os cabo-verdianos Manuel Lopes e Jorge Barbosa, o brasileiro Manuel Bandeira. E aí estão também o fundamentado ensaísmo de Eduíno de Jesus, as polémicas literárias entre antigos e modernos (mesmo entre alguns modernos como Jacinto Soares de Albergaria e Pedro da Silveira); aí está o eco os pruridos moralistas provocados pela exposição de Victor Câmara e que justificaram um ensaio de Eduíno de Jesus sobre o problema da moral na arte; aí está, já por 1953, o debate motivado pelos quatro textos de Eduíno Borges Garcia reunidos posteriormente sob o título de “Por uma autêntica literatura açoriana” (ix).
Em segundo lugar, pelo futuro que veio a ser: a escrita e a actividade cultural de uns e outros, a poesia de Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus e de Jacinto Soares de Albergaria, o diário e a narrativa de Fernando Aires, a narrativa de Fernando de Lima e de Eduardo Vasconcelos Moniz. E também pela abertura ao arquipélago, convocando para o combate pela renovação estética autores como Madalena Férin, Silva Grelo (pseudónimo poético de Cunha de Oliveira), João Afonso, José Enes, Coelho de Sousa, Tomás da Rosa,
Dias de Melo, como refere ainda Eduíno de Jesus.
Numa última perspectiva, pela análise do rasto que a sua obra literária e a atitude cultural deixaram nos escritores das gerações seguintes. Aqui, haverá o testemunho de reconhecimento que cada um destes puder e quiser prestar. E haveria também um trabalho de investigação a desenvolver, mas não compatível com as circunstâncias deste apontamento.
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(i) SILVEIRA, Pedro da (1986 ),«Aqueles anos de 1940 e tal», in ALMEIDA, Onésimo Teotónio , Da literatura açoriana. Subsídios para um balanço. Angra, SREC, pp. 31-42.
(ii) A 27 de Outubro de 1945, o jornal A Ilha trazia um texto de Pedro da Silveira intitulado «Posição e ponto de partida duma geração»; neste texto, o articulista procedia a uma abordagem das condições sociais e históricas em que se situava a sua geração e das tarefas que lhe eram exigidas em termos históricos e sociais.
(iii) Refira-se que, apesar de «companheiro de jornada» dos jovens de Ponta Delgada, Pedro da Silveira era alguns anos mais velho do que eles.
(iv) Citado por REBELO, J.M. Tavares, «O poeta que se formou na ‘Universidade de Ponta Delgada’», in Atlântico Expresso, 2.7.2001, p. 9.
(v) REBELO, J.M. Tavares, ibidem.
(vi) AIRES, Fernando (1999), Era Uma Vez o Tempo. diário V. Lisboa, Salamandra, pp. 62-63. Aos nomes referidos, junte-se ainda os de Eduardo Bettencourt de Ávila e de Fernando de Lima, este expressamente mencionado noutro momento desta entrada do diário.
(vii) Suplemento «Quarto Crescente», n.º 153, jornal A União, 6.2.1987.
(viii) FRANCO, A. C., (1996), Exercício sobre o Imaginário Cabo-Verdiano. Editorial Pendor, Évora.
(ix) Quatro artigos reunidos posteriormente em separata. Já depois de editada a separata, Borges Garcia publicou n’A Ilha um quinto texto em que responde a dúvidas suscitadas pelos anteriores.