Literatura, nuvens e nevoeiro
Joel Neto reagiu, numa das suas crónicas, à minha encomiástica recensão do romance de Álamo Oliveira (Murmúrios com Vinho de Missa) aqui no Jornal de Letras [nº 1118, 6/8/2013], que terminava com estes dois parágrafos:
A minha única reserva, julgará o autor ser fruto da ideologia do politicamente correcto: aqui e acolá, vozes insurgem-se – sem nunca o narrador delas se demarcar, antes pelo contrário – contra a obsessão contemporânea com a pedofilia. Não vou cotejar o texto em busca de frases, dispersas mas convergentes, que rigorosamente legitimem a minha leitura da posição ética implícita na narrativa, mas parece-me, no meu modo de pensar que por hábito procura fugir à fúria das correntes, não poder haver discussão nem negociação para os casos de envolvimento de crianças, ou de adolescentes, sempre que existe uma situação de poder (mesmo que apenas simbólico, ilusório ou até falso) sobre eles, da parte da outra pessoa envolvida. Quando não há paridade de liberdade, a decisão fica sempre condicionada de um lado só.
À parte esse reparo (numa troca de correspondência o autor mostrou-se, afinal, de inteiro acordo comigo) estamos perante um grande romance de um grande escritor. Só a limitação geográfica, a praga que afoga as edições ilhoas, poderá impedir que o reconhecimento aqui prestado ao livro e ao autor encontre ecos concordantes noutros leitores no universo bem mais vasto do mundo lusófono.
Autocitei-me para tornar mais clara a troca que se segue.
Cito agora Joel Neto. Não podendo fazê-lo por inteiro, cinjo-me ao essencial:
A pedofilia é abjecta, ignóbil, intolerável. Cobarde. Mas Onésimo sabe muito mais do que aquilo de que me parece ter-se lembrado. As personagens são apenas uma parte do narrador e o narrador é apenas uma parte do autor. Mesmo quando o narrador é 99,5 por cento do autor, é ainda cem por cento personagem – e os obstáculos entre os espaços de criação envolvidos tornam a multiplicar-se se considerarmos uma quarta entidade ainda, evidente tanto na história como na teoria da literatura, e que é o autor enquanto criador (e não enquanto homem, portanto). Isto para dizer que o caminho que vai de Álamo à sua personagem, como o que ia de Nabokov a Humbert Humbert, de Süskind a Jean-Baptiste Grenouille ou (sei lá) de Defoe a Robinson Crusoe, é longo e tortuoso.
Primeiro, os factos:
Não fiz a menor crítica ao autor e até tive o cuidado de acrescentar que, em troca de e-mails com ele, soubera que concordava comigo. Apenas discordei de algumas repetidas afirmações de personagens do livro e de uma ideia recorrente ao longo das suas páginas.
Agora, as respostas a algumas declarações de Joel Neto, a primeira curta e a segunda mais alongada:
Primeiro: “Alguma da melhor literatura foi profundamente imoral”.
Cuidado. Foi imoral para uns e não para outros. Os que a aplaudiram não a aplaudiram por a considerarem imoral, mas porque os valores que ela defendia lhes eram caros. A literatura fascista no tempo do nazismo nunca foi aplaudida pelos antifascistas. E isso por razões morais, por melhor que ela fosse.
Segundo: “A literatura não tem de ser edificante”. De acordo. Eu próprio já escrevi um longo ensaio teórico sobre as ligações entre a arte e a moral revisitando uma velhísssima questão e colocando-me ao lado da liberdade da arte (“José Enes e a autonomia da arte: uma injustamente tardia revisitação”, In J. L. Brandão da Luz, ed., Caminhos do Pensamento. Estudos em Homenagem ao Professor José Enes”. Lisboa: Edições Colibri / Universidade dos Açores, 2006, pp. 29-42). Todavia lembrava a inevitabilidade de a arte poder não ser aceite apenas como arte e de provocar reacções do ponto de vista ético.
Foi precisamente o que aconteceu neste caso. É que a literatura veicula ideias e valores. Toda a vida foi assim e, através da história, sempre se debateram ideias e valores de alguma forma transmitidos pelas obras literárias. A estética não está desligada da ética. Neste caso, Murmúrios com Vinho de Missa é inegavelmente uma proposta do foro ético e é indiferente saber se quem a propõe é o autor, o narrador, ou alguma das personagens. O autor, o narrador e as personagens aqui esbatem-se e o que fica na mente do leitor é uma ideia que cai sob a alçada da ética. Um livro é “recebido” pelo leitor. Foi, pois, como leitor que emiti o meu juízo.
Quer dizer: não interessa a origem das ideias e valores comunicados ou exibidos. O que importa, do ponto de vista do leitor, é o que passa para ele, pois o que recebe de uma obra de arte não são apenas sensações estéticas visto uma obra literária não ser simplesmente um objecto estético. Pelo menos não o é necessariamente. Muito pouca gente lê literatura apenas pelo prazer estético. E acho que exagero no “pouca”.
Houve uma época em que o marxismo, tal como aliás haviam feito outras religiões, tentou impor uma arte comprometida. Quem na altura lutou contra tal intromissão política na liberdade da arte não o fez por defender uma arte desligada da ética ou da política, mas por se recusar a aceitar que ela tivesse de pronunciar-se a favor de uma determinada ética e de uma bem específica política. Quem se opôs a essa imposição não defendeu (pelo menos não deveria ter defendido) que a arte não tem nada a ver com a ética. A arte é livre para seguir os valores éticos que escolher. Mas nunca estará livre de ser confrontada com quem acha que os valores por ela, directa ou indirectamente, enfatizados ou explicitados (no caso da literatura, seja pelo autor, pelo narrador ou pelas personagens) se livre do debate que a sua recepção pode eventualmete despoletar. De novo, sobre estes conceitos escrevi mais alongadamente em Utopias em Dói Menor, uma conversa em livro com João Maurício Brás (Gradiva, 2012).
No e-mail que Joel Neto me enviou a acompanhar o seu comentário à minha recensão, escrevia: “Penso que o livro do Álamo justifica algum debate público. O pior, mesmo, é este silêncio sepulcral, que prova claramente que poucos se deram conta da sua existência e menos ainda consideraram lê-lo.” Ora isso foi precisamente o que não se passou comigo pois não só li como reagi. Recuemos, todavia, um pouco. Joel Neto publicou recentemente um romance em torno da ideia de as pessoas serem capazes de mudar em tudo, até mudar de religião, mas nunca de clube desportivo (Os Sítios sem resposta). A história que narra (muitíssimo bem, acrescente-se) é um complexo contra-exemplo dessa generalização. O que, porém, fica no ouvido de um simples leitor como eu é de facto a noção de que, na verdade, apesar de complicadas excepções, as pessoas não mudam de clube de futebol. O romance é um divertimento em torno dessa questão, se bem que no percurso fazendo bastante mais do que isso. Ora, nesse caso trata-se de uma observação de carácter sociológico que pode ou não ser empiricamente verificada. A mim, sem ter feito sondagens nem coligido estatísticas, pareceu-me na mouche e achei-lhe logo à partida imensa piada. Não se me ofereceram, porém, questões maiores de ordem moral resultantes da mudança ou não de clube. Li gostosamente o livro como um mergulho no mistério do cérebro humano, que é rico de meandros estranhos, complexos, intricados, mas fascinantes. Não me ressaltou nenhum conceito ético de que discordasse, e fiquei então de posse dessa regra empírica sobre o clubismo, de que nunca me tinha apercebido antes, eu que sempre me fascinei com a questão das mundividências e valores.
A concluir, a literatura não vive fora deste mundo. É vendida a seres humanos para ser lida por eles.
Como se de propósito, ainda ontem eu me deparava no livro de ensaios de Mário Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo, com a seguinte declaração que me parece a propósito citar: “S
e se pensar que a função da literatura é só contribuir para a inflação retórica de um domínio especializado do conhecimento e que os poemas, os romances, os dramas proliferam com o único objectivo de produzir certos desordenamentos formais no corpo linguístico,o crítico pode, tal como tantos pós-modernos, entregar-se impunemente aos prazeres do desatino conceptual e às trevas expressivas”. (p. 91).
No meio de tudo isto, não se perca de vista a minha recomendação: Murmúrios com vinho de missa é uma obra de se ler com prazer imenso. O reparo que fiz não retira à obra nada do seu mérito estético. E, já agora, convém lembrar que, feliz ou infelizmente, o mundo não muda com um romance.
Onésimo Teotónio Almeida