No Brasil há sempre um livro à sua espera no final de qualquer palração ou palestreca. Autores de edições caseiras (os americanos chamam-lhes “de vaidade”:Vanity Press) presenteiam-nos com as suas últimas criações e não raro a dose inteira da produção de suas vidas. Campeia uma tremenda sede de leitores no meio de tanta escrita. Antigamente em edições frouxas, hoje vistosas (a edição brasileira passou quase toda a vestir alta costura), abarrotam-nos as malas com ameaças de excesso de peso. Felizmente esta busca do leitor não se limita aos autores-de-só-para-oferta. Uma viagem pelo Brasil é fértil em tudo, e nessa safra livreira arrecada-se muita produção nada desprezível. Acabo mesmo sempre por descobrir peças de gabarito, de se perder por ignorar.
De Santa Catarina tive que remeter um gordo pacote. Mas já depois deste despachado ainda recebi (à brasileira, ganhei) mais ofertas que fui folheando aqui e ali conforme o tempo disponível, distraindo-me nas páginas que o acaso me foi plantando diante dos olhos.
De breve passagem por Blumenau dei comigo em sábado de manhã num parque da cidade entre artistas e poetas que iam partilhar a sua criatividade numa feira de artesanato. Blumenau é a Alemanha nos trópicos. Teutónica por dentro e por fora, o exterior vem revestido de jeitinho brasileiro na afabilidade da forma como superfície de gelado derretendo ao sol. Menos metafórico e mais realista: às dez da manhã já era a cerveja, em vez do cafezinho, a animar o convívio. Da dose industrial de ofertas ainda não li tudo; duvido até se lá conseguirei chegar. Afoitei-me pelos mais magros como o Letramorfose. Poemínimos Reunidos. Tchello d’Barros, seu autor, dera-me um marcador de páginas com um poema monossilábico que me deixou de pituitária afitada: Mais / luz / do / que/ o / sol / do / meu / céu / só / o / som / do/ seu / sim.
O livro trazia outros. Alguns funcionam melhor com fonética e grafia brasileiras:
vênus
nos
vê nus
Estoutro:
posso ir
te
possuir
?
E ainda:
teu corpo
não se
comporta
mas me
comporta
Transcrevo mais dois:
senti
vazio
sem ti
E este último de classicíssima ressonância (Cancioneiro Geral, Senhora, partem tão tristes… ) e notável perfeição formal:
partes de mim
se partem se
partes de mim
Reconheço que estou a infiltrar-me pela relva crítica do Eduardo Pitta, meu vizinho nas páginas da LER, (a quem ainda não agradeci devidamente o rico Comenda de Fogo), mas o meu gosto pelas palavras vem de longe e elas prendem-me nesses seus desdobramentos em sentidos-surpresa. (O Tchello mandou-me depois por e-mail um slogan a ser utilizado numa campanha de leitura no Estado: Vá ler mais / para / valer mais – de novo aqui a funcionar melhor se pronunciado à brasileira.)
Esse pacote adicional de brindes em Blumenau (depois de remetido de Santa Catarina o dito volume de porão) trazia outras curiosidades. O meu cicerone, o Professor Bráulio Schloegel, fizera questão de me instruir levando-me aos lugares santos da presença germânica naqueles paradeiros. Meteu-me também ele no saco um magote de bibliografia sobre a colonização iniciada pelo Dr. Blumenau que, por sua relação de amizade com D. Pedro (o segundo, calculo eu) conseguiu facilmente o alvará da fundação da cidade. Um dos livros é de outra figura alemã da colónia, um tal Fritz Müller de quem eu… nicles. A cura da minha ignorância foi rápida e gostosa desbravando uma obra colectiva – Fritz Muller: reflexões biográficas. O nosso colono germânico lera A Origem das Espécies, de Darwin (Müller chegou ao Brasil em 1852, sete anos antes da sua publicação) e tornara-se discípulo convicto. Interessou-se vivamente pela América do Sul e, para além de pensar que seria importante implantar ali um contingente teutónico (“uma força dominante /para / suplantar de uma vez por todas o decadente elemento romano” – isto é, a gente, claro!) dedicou-se à recolha e estudo de espécies.
Continua…
Foto: Praia do Pântano do Sul,Sul da Ilha de Santa Catarina
Junho/2009 _Acervo Blogue LPSN