O Dr. Müller desmultiplicou-se nas suas capacidades de colonizador visionário e pesquisador, conseguindo arranjar tempo para escrever centenas de trabalhos publicados na Europa em revistas especializadas. Fervoroso adepto, empacotou para alemães a teoria darwinista, que até então encontrara agressiva resistência, influenciada sobretudo pelas hostes teológicas germânicas. Escreveu Für Darwin, hoje creditado como o grande responsável pela aceitação do darwinismo na Alemanha. Correspondeu-se amiudadamente com o cientista, que veio a nutrir por ele grande afeição, ao ponto de providenciar e financiar parcialmente a tradução inglesa da obra.
Livro puxa livro como cereja puxa cereja. Dias antes de seguir para o Brasil recebera eu um grosso volume de 800 páginas: Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, coordenação do Professor Luís Arruda e edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Em tempos, eu vasculhara na biblioteca da Faculdade de Ciências de Lisboa o espólio desse brilhante investigador micaelense que a morte levou bem cedo (1854–1887), e a quem a revista Prelo chegou a dedicar um número especial. Mas agora está tudo ali bem organizado e anotado a proporcionar-nos o prazer de viajar pela mente aguda e atenta de um verdadeiro cientista. Contemporâneo e oriundo da mesma cidade natal de Antero e de Teófilo, correspondeu-se com este último e estabeleceu um diálogo científico sobretudo com inúmeras figuras e instituições do seu tempo. São quase 350. De realçar é obviamente a correspondência com Darwin. Arruda Furtado lera A Origem das Espécies e declarava-se disposto a procurar nos Açores dados zoológicos e botânicos que contribuíssem para a resolução de dúvidas e para a confirmação das propostas darwinianas. Darwin responde-lhe com muito afecto e interesse, mas a troca não dura (6 cartas de Arruda Furtado e 4 de Darwin), porque o intercâmbio acontece já no fim da vida do inglês e este não chega a responder à última carta do açoriano, escrita poucos meses antes do falecimento do revolucionário da biologia.
Estas associações em serendipity não terminam aqui. Há mais uma semelhança entre o alemão de Blumenau e o meu patrício. Arruda Furtado escreveu também um livro defendendo o evolucionismo, em resposta a um padre que, na Matriz de Ponta Delgada, atacara a teoria darwinista. O livrinho O Homem e o Macaco saiu ali em edição de autor em 1881. (Em retribuição à generosidade do meu cicerone blumenauense enviar-lhe-ei um exemplar da correspondência do meu conterrâneo. De O Homem e o Macaco não. Nunca mais foi reeditado e eu próprio contento-me com fotocópia. Mas aí fica a dica. Um ensaio introdutório, uma actualização da ortografia, poderia ser um bom projecto de Mestrado em História da Ciência. Ou das Ideias. É uma ideia. Passem a palavra.)
Como esta crónica não é propriamente sobre o darwinismo mas sobre livros, voltarei a Santa Catarina para agarrar o filão livresco. Não vou fazer a lista de tudo o que entretanto já consegui devorar (a agilidade maleável e suave, gostosa e doce do português do Brasil continua a ter sobre mim o poder encantatório de sereia). Das ofertas lidas, sublinho as crónicas de Sérgio da Costa Ramos, O Plano Surreal, que alargaram agora a Santa Catarina a geografia do meu gosto literário brasileiro. Entre os não poucos que comprei, estão as 200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga, um clássico-papai do género nas terras do Ipiranga. Em casa, entretanto, esperavam-me Rache o Procópoio! e No Après-Midi de Nossas Vidas, de Lustosa da Costa, cearense de Fortaleza, agora em Brasília. E também de Brasilia o Zelimir Brala, antes de regressar a Zagreb, enviara-me As Mentiras que os Homens Contam, do impagável Luís Fernando Veríssimo, que são aliás pequenas histórias com diálogo de mestre. Enfim, sacos de prosa de derreter qualquer iceberg e safanar os almas-de-pau, a dar razão a Vitorino Nemésio que isso de ser brasileiro é questão de começar. E por ser esta uma crónica em serendipity a terminar com livros de crónicas, aí vai mais um encadeadamento. De Nemésio, comprei em S. Miguel e li na praia da Graciosa Se Bem Me Lembro, uma colectânea delas, crónicas justamente, da responsabilidade de Joana Morais Varela e com chancela da Contexto. Creio que as conhecia todas, mas souberam-me a frescura de novidade. E fiquei sem saber se os brasileiros é que desengravataram o português (pego nesta de emprestado ao Vinicius) ou se o português é naturalmente desengravatado e só em Portugal o sobrecarregamos com roupões de Inverno. O de Nemésio desconcerta-me pela riqueza da sua simplicidade criadora. E ele não veria problema algum nesta minha serendipity a começar com o Tchello e quase a acabar no violão de Nemésio. Não o surpreenderia, ele que toda a vida o que mais fez foi serenditipar por entre livros e gente.
PS – Horas depois de sair a crónica para a LER chegou-me do Professor Braulio Schloegel um bonito e ilustrado volume – Dear Mr. Darwin. A intimidade da correspondência entre Fritz Müller e Charles Darwin. A serenditipação prossegue.
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Notas Biobliográficas:Açoriano, nascido no Pico da Pedra,Ilha de São Miguel. Para além de ser professor universitário do Departameno de Estudos Portugueses e Brasileiros da
Universidade de Brown, em Providence, Rhode Island, EUA,com a vida em torno do ensino e da escrita acadêmica, dedica parte da sua atividade à escrita em áreas como a crônica, o conto,o teatro e prosemas. De entre os seus livros contam-se,no teatro: Ah! Mónim dum Corisco!(Salamandra,3ªed.1998) e No Seio Desse Amargo Mar (Salamandra,1991); na crônica,os mais recentes são Viagens na Minha Era(Lisboa: Temas & Debates 2001) e Livro-me do Desassossego(Lisboa: Temas & Debates 2006); no conto,(Sapa)teia Americana(Salamandra,2ªed.Círculo de leitores,2001) e “Aventuras de um Nabogador &outras estórias-em-sanduíche” (Lisboa:Bertrand Editora,2007).Publicou ainda um livro de prosa poética:Onze Prosemas e um final merencório),Ed.Ausência,2004.
Legenda Foto:a) Entre amigos,contando histórias…
Acervo do Blogue Comunidades
b) Blumenau, foto de Mario Barbetta