Lobato politicamente correto
A discussão sobre racismo na obra de Monteiro Lobato gira, basicamente, em torno de cartas que ele não publicou e do livro “Caçadas de Pedrinho”.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal julga se devemos ou não censurar Lobato, eu, cidadã brasileira, jornalista e escritora – em plena posse das minhas faculdades mentais, é bom que se diga -, resolvi dar um adjutório. “Consertei” um texto desse autor, que me ensinou a maravilha que é ler, sonhar, viajar por mundos imaginários, aprender sorrindo e, assim, ser muito, muito mais feliz.
O resultado de meu trabalho está às ordens das hostes politicamente corretas. Meu desejo de agradar é tanto que, em alguns excertos, criei mais de uma versão. Oferto-as graciosamente, ao gosto dos fregueses.
“Caçadas de Pedrinho”, Editora Brasiliense, 1956
Página 5, sétimo parágrafo: (…) vamos caçar a onça (…)
Acrescentar uma nota de pé de página avisando que a lei de crimes ambientais (número 9.605/98), em seu artigo 29, tipifica como crime matar, perseguir, caçar, apanhar (…) onça-pintada sem a devida autorização da autoridade competente. Deixar absolutamente claro que, em nenhuma hipótese, nem mesmo para salvar a pele (alerta meu), uma onça-pintada poderá ser abatida, ainda que esteja rondando animais de criação. Atenção, criancinhas do Brasil: vocês devem “chamar a autoridade ambiental da região para recolher a onça e levá-la a outro local”. Se der tempo, naturalmente.
Bem, nos anos 1930, o Ibama ainda não existia e as caçadas eram livres. Então, o erro dos meninos do Sítio não foi tão grave. Mas não custa alertar aos leitores que, hoje, matar onça é crime. Se, por acaso, uma delas ameaçar um ser humano, o melhor é entregar a alma a Deus, porque ligar para a autoridade competente será difícil. Até que ela chegue para enquadrar a onça “nos costumes”, o indigitado cidadão já terá sido devidamente devorado.
Página 11, oitavo parágrafo: “(…) Foi uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores”
Sugiro deixar como está. Este “todos” se refere à garotada do Sítio: Narizinho, Pedrinho, Emília, o Visconde de Sabugosa e Rabicó. Como não há, entre os citados, nenhum afro-descendente, o termo “macaco” não foi utilizado para humilhar ninguém. Os leitores devem passar batido.
Página 18, sétimo parágrafo: “(…) Mais corajosa, a negra aproximou-se, viu que era mesmo uma onça (…)
Trocar a palavra negra para afro-descendente. Aliás, sempre que aparecer esse termo no livro – e aparece muitas vezes – trocar por afro-descendente. É mais muderno: remete aos Estados Unidos da América que sempre exportam novidades, inclusive as lingüísticas.
Página 23, décima-quinta linha: (…) E aves, desde o negro urubu fedorento, até essa jóia de asas que se chama beija-flor.”
1) Total discriminação. Por que o urubu tem que ser negro e fedorento? A citação permanece apenas se acrescentada da seguinte nota explicativa: a ave era o símbolo do Clube de Regatas do Flamengo.
OU
2) Trocar por um raro urubu albino. Chique, não?
Página 30, sétimo parágrafo: “(…) É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém. Nem mesmo tia Nastácia que tem carne preta (…)”
1) “Nem mesmo tia Nastácia que tem carne assada”
2) “Nem mesmo tia Nastácia que passou do ponto”
3) “Essa mania da tia Nastácia de ficar se bronzeando…”
Página 45, segundo parágrafo: “(…) a pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó e dona Benta somados (…)
Pobre, por quê? Por acaso a tia Nastácia passava necessidade? Minha sugestão é “(…) a remediada afro-descendente era mais desajeitada do
que Rabicó e dona Benta somados (…)”
Página 48, quinto parágrafo: “(…) lá isso é – resmungou a preta, pendurando o beiço (…)
Convenhamos, é mais elegante afirmar:
1) “(…) Lá, isso é, resmungou tia Nastácia passando batom nos lábios (…)”
OU
2 “(..) Lá, isso é, resmungou a afro-descendente com um esgar (…)
Página 55, quarto parágrafo: “(…) trepou, que nem uma macaca de carvão, pelo mastro de São Pedro (…)
Este é um dos nós górdios da novela. Mas tudo tem solução, basta boa vontade. Vamos às sugestões:
1) “(…) trepou, que nem uma primata, composta de carbono, enxofre, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio (…)”
Não, não e não. Nada pode ser mais ofensivo do que classificar alguém de primata, pelo amor de Deus. Além do mais, quem disse que Tia Nastácia era da cor de carvão mineral? Tentemos, pois, outra opção:
2) “(…) trepou como uma afro-descendente que entrou em combustão espontânea (…)
Assim também não dá. Além de não fazer sentido, quebra o ritmo gostoso da prosa de Lobato. Sinceramente, o melhor é:
3) “ (…) trepou, com a agilidade de um atleta olímpico do Quênia (…)”
Pronto, perfeito. Passa a idéia correta e, vamos combinar, os maratonistas quenianos têm pernas lindas…
Página 56, quinto parágrafo (…) uma velha branca e uma velha preta (…)
Monteiro Lobato que vá lamber sabão. Branca ou afro-descendente, ninguém é velho aos 60 anos. Daqui a pouco, a Associação da Terceira Idade também vai querer meter o bedelho neste livro…
Página 58, primeira linha: “(…) o furrundu está dizendo que não agüenta mais (…)
Não é fofo? O “onço viúvo” chamou a Tia Nastácia de um doce feito com cidra ralada, gengibre e açúcar mascavo ou rapadura. Neste climão romântico, o certo é trocar a frase por alguns suspiros e a exclamação ansiosa:
“(…) Hummm, o docinho está dizendo que não agüenta mais (…)
Página 84, segundo parágrafo: “(…) desmaio de preta velha é dos mais rijos (…)
Esta é simples: “(…) desmaio de qualquer velho é dos mais rijos (…)
Página 114, último parágrafo: ”(…) negro também é gente, sinhá (…)”
Nenhuma dúvida a respeito. Mas, como há alguns que parecem não acreditar e andam atrás de chifres em cabeça de cavalo, podemos substituir a frase por um simples e simpático:
“Somos todos iguais, sinhá”.
Na esperança de ter colaborado para encerrar este imbróglio sem pé nem cabeça, despeço-me dos meus leitores – alcancei a cifra de 27, ninguém me segura mais – com um sorridente au revoir.
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Angela Dutra de Menezes é escritora e jornalista
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