Porque nunca nada está definitivamente dito,
há lugares em que a solidão se monumentaliza.
Sai-se, por exemplo aos domingos de tarde e não
se vê ninguém na rua. Privilégio? depressão?
ou alegria? Lugares assim, onde os segredos
foram varridos pela chuva e estão a monte,
nalguma berma mais íngreme. Lugares pequenos,
cujas ruas, por mais cimento e alcatrão, sempre
soam a filmes de época, onde se sobrevive
à custa de expedientes, fazendo canções à
miséria e poemas que se dedilham à noite
em bolorentos tugúrios, por entre gritos de
cagarros e de gaivotas que deixam na areia
preta as suas assinaturas, quais poetas chinos.
Bálsamos que os cegos repetem à porta das
igrejas e que os surdos escrevem para alegria
de todos. Palavras antigas que guardamos em
casa e ressoam de repente no escuro, como
se a infância voltasse com as mesmas perguntas,
a mesma amorosa atenção às coisas de sempre.
Carlos Bessa,
Em partes iguais,
Assírio e Alvim, Lisboa, 2004.