Londres, ou "o outro lado do espelho"
Quando se chega a Londres, vinda do
Extremo Oriente -mesmo sendo o dia após o atentado na London Bridge –
invade-nos a estranha sensação de termos passado para o "outro lado do espelho,"
para um mundo e uma realidade diferente daquela onde mergulha agora o nosso
quotidiano lá do outro lado do mundo. Um
estranho apelo de remotas raízes assoma-nos à alma …Mesmo com o ruído
incessante das sirenes, das ambulâncias, dos carros de polícia, apesar duma
ansiedade e dum receio que se respiram em cada recanto, percorrer Londres
assemelha – se a caminhar entre nuvens de bruma onde a História, a Literatura e
a Arte em geral trilharam passos indeléveis. Imaginar cada uma destas esquinas
percorridas por Dickens, por Virgínia Woolf, por Óscar Wilde… por tantos outros que
gravaram na pedra da memória o seu nome e a sua obra.
Percorro Oxford Street e estranho a calma, a total ausência de gente. Será que
atravessei mesmo o espelho e estou num reino imaginado? Apenas pequenas lojas
de souvenirs estereotipados -iguais
em Londres, Viena, Istambul, Hong Kong, Macau ou Paris -abriram timidamente as portas. Um transeunte, reparando no meu interesse por
um estabelecimento fechado, diz- me num
inglês "tarzanico" de estrangeiro: "Eleven
open". Olho para o relógio -também
ele baralhado com o jet lag deste cruzamento de mundos e de lugares
entre Oriente e Ocidente -e a realidade emerge: Domingo e ainda nem sequer
são nove da manhã ! As sete horas de diferença horária em relação a Macau, e a
dificuldade em dormir, são, afinal, os responsáveis, não pela ausência de
gente, mas pela minha presença ali tão cedo.
Ensaio esquinas e ruelas – conheço
bem o meu sentido de desorientação e sei que me perco em Londres da mesma
maneira que o faria numa aldeia com meia dúzia de ruas – onde tomaria inevitavelmente
os cinco destinos errados antes de acertar com o correcto. Mas andar perdida em
espaços conhecidos ou desconhecidos tornou-se-me, desde há anos, uma simples
forma de existir e de estar viva. Em resposta à máxima de Descartes "
penso logo existo" eu respondo com o meu " perco- me logo
existo". Mais do que o pensamento será este instinto de procurar o
desconhecido, de percorrer novos rumos, de experimentar novos sabores, novas
culturas, novos cheiros, multiplicando e reconstruindo cada aresta do que
chamamos vida. Sim, viver poderia ser muito mais simples: uma casa modesta e
agradável numa pequena cidade, uma profissão minimamente estável, uma família,
um cão ou um gato… Mas faltaria sempre a vertigem do voo, o esboço do sonho,
o desejo de viajar horas perdidas acima das nuvens, depois enterradas no do
tempo. O prazer de entrar numa biblioteca como se transpusesse as portas do
reino mágico de Alice no País das
Maravilhas -esse fascínio de passar para o outro lado do espelho -uma euforia e um deslumbramento que se sente ao descobrir
a solução de um puzzle, ver cada peça encaixar na perfeição, – seja numa aula,
na orientação de uma tese, na preparação de um trabalho ou na visita a uma cidade
estranha à qual sentimos pertencer desde o primeiro toque. Partilho agora a
admiração de Jorge de Sena pela cidade, revelado nas Cartas de Londres, nos anos cinquenta.
Percorro as ruas, absorvendo cada
detalhe: entro na Catedral de São Paulo, atravesso a ponte Milennium, passo
pelo Globe, o teatro de Shakespeare, visito a Tate Modern: entre a genialidade
e o absurdo, as fronteiras são tantas vezes ténues. Deslumbro-me com Dali,
Picasso, Kandinski, Malangatana… Outrora
e sempre, impregnado nas raízes de toda
a arte, o desejo de permanecer, de perenizar rostos, imagens vidas, fugindo à
ditadura do tempo e da morte -a Portrait
Gallery assume-se como testemunha dessa
vontade de ficar, de desafiar a condição humana; na National Gallery, entre Cezannes,
Monets, Velazquez e Turneres, procuro os fantasmas de Goya -mas deparo-me com a subtileza de Vermeer e isso já
me basta. A certa altura, o cansaço do corpo deixa de responder à ansiedade da
alma. Recordo também as imagens de Londres configuradas pela escrita de Maria
Ondina Braga -tal como sucedeu com Jorge Sena, foi também Londres a primeira
cidade estrangeira que habitou -onde tentou reunir os fragmentos da sua identidade,
no âmago da mais profunda solidão, tal como o fez, posteriormente, em Macau, Goa, Paris, Luanda ou Pequim…Pergunto-me
também: que partes de mim irei construindo ou reconstruindo nestas deambulações
pelo mundo? Que dimensão de nós nasce, cresce ou se perde definitivamente em
cada viagem? Escreveu Mark Twain "A viagem é fatal para o preconceito, a
intolerância e a estreiteza de espírito, e muitos dos nossos precisam
urgentemente dela por causa dessas coisas" (Apud, Paul Théroux, A Arte de Viajar, 2012, p. 30). Que
viagens serão necessárias, nesta nossa época, para aniquilar esses males?
Vivemos tempos do Brexit, da emergência de movimentos extremistas, de
nacionalismos exacerbados, de isolamento no meio da multidão (onde o teor
"humano" se desvanece, engolido pela voracidade tecnológica), duma possante
ditadura do medo do "Outro", do diferente -que pode conter a fonte de todos os perigos ou até
a chave de uma Caixa de Pandora que se poderá abrir a qualquer momento…
Sem respostas, refugio-me na British Library,
percorro as páginas do silêncio e da sábia solidão dos livros: e novos mundos
se vão revelando na penumbra da biblioteca. Sou novamente Alice a transpor a
fronteira para o "outro lado do espelho", tentando ler e decifrar um qualquer
reino mágico onde possa também, talvez algum dia, gravar a minha humana sede de
permanecer.