[1]Lou Lim Leoc: afluente de mundos e gentes
“Deste jardim o que levo comigo /É um ramo de bambu para servir/De espelho ao resto dos meus dias.”
Eugénio de Andrade, in Pequeno Caderno do Oriente
Passa-se o portão e entra-se num reino de magia. Os bambus acenam suavemente na brisa densa e molhada de Abril.
Há gente por todo o lado. Um fio de música ergue-se saído das águas, das carpas negras e das pedras.
Sentada num dos bancos, está uma mulher, sozinha, de olhar parado. Pela fisionomia vê-se que é filipina. Macau, caleidoscópio de raças, culturas e credos tem essa virtude: mostrar-nos o completo mapa-mundi dos tipos humanos, que aprendemos a decifrar em cada rosto, em cada olhar.
Maria – poderá ser esse o seu nome – veio como tantas outras em busca de trabalho, para sustentar os três ou quatro filhos que lá deixou. Partiu do seu reino de beleza, onde a miséria gritou mais alto e cruzou o mar de jade, rumo a Macau, the “city of dreams”, como se lê no gritante néon de um edifício pujante onde se alberga um dos muitos casinos.
Ela faz limpezas em várias casas de ocidentais, já trabalhou num restaurante e Coloane e vive com mais oito companheiras num exíguo T2, na Taipa – única forma de contornar o preço elevadíssimo das rendas praticadas em Macau.
Naqueles momentos olha, ansiosa, para o telemóvel, que segura com as duas mãos. Por estas terras do oriente, dá-se e recebe-se com as duas mãos, o que prova que não há nada a ocultar…E que poderá esconder o sorriso abstracto com que olha as crianças a brincarem do outro lado?
Seguidamente, cansada talvez de uma espera sem final à vista, recosta-se no banco e parece adormecer por instantes.
Um calor húmido emana do céu plúmbeo. De aço, a estranha humidade que tudo invade, semeando manchas de bolor enegrecido.
Do mesmo aço a saudade que lhe corrói o peito… Talvez para o ano consiga juntar o suficiente para visitar a sua ilha esquecida pelos ventos da bonança. Até lá, resta trabalhar e enviar para a sua terra os magros ganhos.
Mais adiante, bem perto da Ponte das Nove Curvas (que afasta os maus espíritos), num outro banco, um homem também sentado, cujo rosto revela uma estranha e profunda tensão… Talvez se chame Zhing e tenha rumado a Macau, oriundo da China continental – são milhares e milhares os forasteiros que aportam na “Cidade do Santo Nome de Deus” vindos de tantos lugares! Formam um anónimo formigueiro humano e pululante que conquista as ruas e as praças, escorrendo por todos os espaços. Rumo a quê? Á descoberta, à novidade, ao sonho?
Mas Zhing parece realmente desesperado. Terá talvez perdido as economias amealhadas ao longo de anos nalgum dos inúmeros casinos? É provável, não seria sequer invulgar. A febre do jogo move muitos dos que desaguam nesta “city of dreams”, berço de tantas ilusões semeadas nas luzes da noite, nos gritos exuberantes de néon, brilhos dourados de riqueza ostentada em cada casino. Muitos chegam hipnotizados pelo vício, mas também pela promessa do Eldorado. Um eldorado que parece chover das inúmeras máquinas, como a chuva quente e densa de Abril. Apostar, apostar, jogar tudo até à última moeda… porque no início se ganha e o entusiasmo aumenta: uma espécie de fogo secreto, uma chama ateada pela sorte inicial. Mas depois… vai chegando o sabor amargo da perda: as jóias todas nos penhores (aquele anel de jade que pertencera à avó e que se tornara mais valioso com o acinzentar dos anos), a vida suspensa, debruçada no limiar do abismo, dependente de números, senhas, fichas, do resultado duma máquina, duma cor…
Por vezes, há um ou outro caso em que o fracasso no jogo funciona como passaporte para a morte. E o suicídio acontece, uma fuga irremediável das garras do destino…
Um homem bem vestido, de fato cinzento, aproxima-se de Zhing e aborda-o através de meia dúzia de palavras que parecem pronunciadas em mandarim. Entrega-lhe uma pasta negra e o desespero parece por momentos abandonar-lhe o rosto. Agradece-lhe, recebe a preciosa dádiva com as duas mãos, levanta-se e segue-o em silêncio.
Entretanto, os risos, as brincadeiras das crianças continuam, assim como a diáfana música, como se pertencessem a um outro reino, prenhe de magia, uma outra dimensão paralela aos momentos agridoces do quotidiano real da cidade.
Do mesmo modo, os bambus lá permanecerão na sua inigualável rectidão, crescendo impulsivamente rumo ao infinito, sussurrando para afastar as influências nefasta e recolher ao seu redor todos os mundos e gentes que afluem a Lou Lim Leoc.
Dora Nunes Gago
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.
[1] Nome de um jardim situado em Macau