Memorandum
João-Luís de Medeiros
—-*****—–*****—-
M E D I T A Ç Ã O E S T I V A L
Na encruzilhada bibliónima das nossas modestas referências culturais (talmude, bíblia, alcorão) continuamos a soletrar o alfabeto da civilidade apoiado no duplo travejamento clássico: a prática do bem, com o saudável desdém pela eventual reciprocidade; a coragem de confiar no semelhante, segundo o (discutível) princípio de que as pessoas são boas até prova em contrário…
Nas últimas cinco décadas, vimos cultivando o hábito de sorrir aos limites impostos à liberdade, formulando perguntas de cariz poético: quem tem medo do lume antigo que acendeu a Vida? Que me dizes da fome que engorda a fé, e do excesso que sufoca o Bem…?
Vamos interromper este palavreado enevoado; vamos continuar esta romagem pela sinuosa avenida da fraternidade humana; deixemos em paz o arrotador professoral a digerir as suas migalhas de felicidade em saldo; vamos conversar suavemente com os nossos irmãos imigrantes que nem sequer imaginam a existência, numa comunidade democrática, do direito ao trabalho (e à alegria sensata) como parte da livre cidadania…
Ainda não há muitos anos (falo apenas do que consigo observar, nos últimos 30 anos, no meu percurso imigrante), havia uma consistente resistência da parte das famílias açorianas em aceitar ajuda institucional oriunda do ‘welfare‘. Muitos aspectos das dificuldades iniciais da comunidade imigrante faziam parte da chamada ‘hidden agenda‘. Antigamente, as famílias materialmente abastadas fugiam à contaminação da miséria dos deserdados. Nos tempos modernos, os ‘novos-ricos’ ostentam o seu carinho à fedorenta deusa da ‘indiferença’ ao talento alheio. É evidente que nos últimos cinco anos a crise sócio-económica tem sido promovida ao mais horrível ‘equalizer’ psico-económico da recente história mundial. Mas o sofrimento imigrante já andava patente na vitrine silenciosa dos disenfranchised people, sobretudo após a balbúrdia neo-capitalista trazida pelo evangelismo reaganiano (1980-88).
Como aconteceu a outros grupos étnicos, os imigrantes portugueses também foram confrontados pelo seu quinhão de opressão social, devido às características da própria bagagem étnico-cultural (intimativa percepção de perigo, raiva, descrença, incerteza). Não deixa de ser oportuno notar que o chamado ‘fear based ethnic sentiment’ tanto serviu para bordar alianças defensivas, como para separar e enfraquecer muitos grupos, vítimas das insulares ciumeiras dos vigilantes do calendário do sucesso alheio…
Embora à distância, procuramos permanecer atentos ao facto de que as poderosas instituições não têm amigos seguros – só têm interesses programados! Na prudente condição de herdeiro do pensamento alheio, não sinto pejo em repetir o slogan preferido: ‘nobody wins where somebody loses.’ Mesmo que o façamos ‘à boca-calada’, creio ser cada vez mais premente contrariar as mais persistentes causas da estagnação étnico-profisssional no seio das comunidades de expressão portuguesa: alienação cultural; solidão psicossocial; ciúme ferrenho da inveja; comparação doentia entre o próprio não-ter e o excesso alheio…
A aprendizagem étnico-cultural é um atalho sem fim: o plano de encorajar a opinião pública para minimizar o chamado ‘unnecessary social pain’ – sobretudo a dor amarga do ‘disenfranchisement’ – não deveria continuar adiado sine die. Seria bom reconhecer que a ignorância não é cancro incurável, porque, felizmente, é uma debilidade cultural tratável…
O conflito social entre grupos raramente aufere visibilidade política. Mas seria bom sermos alertados para contrariar o chamado ‘racismo teleológico’ que ainda vigora nas comunidades lusófonas. Até mais ver, continuamos rodeados por ‘políticos-pigmeus’ do portugal-dos-pequeninos, sobretudo os alcaides das comunidades inflamados pela ciumeira étnico-territorial…
Mas já é tempo de acordar! Salvaguardadas sejam as devidas excepções, nem sempre o que é facultado gratuitamente consegue granjear o respectivo apreço dos potenciais beneficiários. Persiste entre nós a tendência para apequenar (embaratecer) o capital humano inerente ao voluntariado. Gostaria de me pertencer mais a mim próprio nos anos que se aproximam, ou seja, menos emprestado a actividades por vezes culturalmente gratificantes, mas não raro alienantes… Temos aprendido que a injustiça económica é um dos aliados mais estreitos das revoluções sociais. Ainda hoje, o passaporte do sucesso da maioria dos estudantes-finalistas depende da respectiva subserviência táctica no sentido de perpetuar o situacionismo oficioso. Ser apóstolo da mudança é sujeitar-se ao rótulo (e às penas) de pecador subversivo…
…/… enfim, haja silêncio criador! Convido-vos à meditação estival de 2012: perante o espectáculo diluviano das lágrimas silenciosas provocadas pela crise global, alegra-me reconhecer que as novas gerações insulares estão a celebrar as pazes com o oceano Atlântico. Afinal, o nosso querido mar continua a ser a larga estrada de recurso para a libertação dos ilhéus… Juro que não estou a badalar àcerca do mistério da Liberdade – que ainda não sei o que é! Estou apenas a conversar com os ilhéus da ‘terceira-ilha do sistema solar’ – veterano grão-de-areia terrestre onde nascemos, amamos, sofremos, morremos, sempre na busca inglória de escape orbícola…
—–^^^^—–^^^^—–
Rancho Mirage, California
Agosto, 2012
Pintura de Claude Monet: http://www.francemonthly.com/n/0304/index.php