(James Ensor – 1888-1949)
REVOLTA
Quando a sombra da noite amarga vem descendo,
Quando os braços do sono estreitam o hemisfério,
Eu vou tristonho e só fitar o quadro horrendo
Da desgraça a gemer sob o manto sidério.
Oh é precisamente aqui, nestes montões
De lodo e podridão chamados cidades,
Onde domina o ouro e a fúria das paixões,
Aqui é que se vê mais vis iniquidades.
Aqui é que o leão chamado capital
Se alimenta feroz da vítima pobreza,
Espalha em toda a parte os gérmenes do mal
E tem em toda a parte as honras da nobreza.
Pelos becos divago, esquálidos, infectos,
Onde a miséria e a lama à noite vão gemer;
E os meus olhos febris, de lágrimas repletos,
Têm visões de vingança horrendas a tremer.
Aquelas pobres mães não hão-de acalentar
Os filhos na aversão aos déspotas do ouro?
Não lhes dirão os pais que foram trabalhar
Para os cresos venais encherem o tesouro?
E o Cristo, o meigo Cristo, o pai da humildade,
No olvido há-de ficar, bem como um louco velho
Que veio pregar em vão a crença na verdade
Posta em letras de luz nas folhas do Evangelho?
Oh nunca, nunca! E enquanto a minha humilde voz
Puder opor um não ao mundo que delira,
Hei-de ajudar, ardendo em desespero atroz,
A queda da opressão do povo, da mentira.
(1922)
Manuel Barbosa, Incerta Via, Ribeira Grande, Edição do autor, 1953.
Manuel Barbosa (1905-1991), advogado, escritor, poeta, natural da cidade de Ribeira Grande, ilha de S. Miguel, trabalhou na terra natal, na cidade de Ponta Delgada e na vila de S. Brás de Alportel, Algarve, onde veio a falecer.