“Moisés”
Moisés, octogenário, ia com passo incerto,
Curvo a um cajado tosco, a custo, no deserto
Das tribus de Israel o povo conduzindo.
Sentou-se n’uma pedra; a tarde ia caindo:
A luz do sol oblíqua a barba lhe doirava.
Em seu olhar profundo ainda scintillava
Sua alma luminosa. Outr’ora junto ao Nilo
Elle fascinaria ingente crocodilo,
Tal como fascinou do Pharaó a filha.
Pediu de beber; chegaram-lhe uma bilha
À bocca sequiosa. Então, erguendo o braço,
Apontou ao poente. O luminoso espaço
Era puro de azul como um enorme espelho.
«Já longe, ó filhos, diz, nos fica o mar Vermelho;
«Recusam-se meus pés a andar neste deserto;
«A hora se avisinha; eu sinto-me já perto
«Da grande eternidade. Ao cimo d’esta serra
«Ajudae-me a subir; verei de longe a terra
«De Chanaan refulgir ao meu olhar já fôsco;
«As águas do Jordão não passarei comvosco.»
Então, subindo ao monte, ao expirar o dia
Sentiu passar na alma uma última alegria
E os braços estendeu na direcção do norte.
«Filhos, continuou, antes que chegue a morte,
«Acercae-vos de mim; ouvi o meu conselho;
«Gravae bem na memória a falla deste velho
«Que, desde o Egypto aqui, foi vosso companheiro
«E padeceu comvosco a dôr do captiveiro:
«Sois irmãos; como taes amae-vos n’este mundo».
E Moisés expirou. Um sentimento fundo
Cortou os corações; as lágrimas caíram,
E as tribus de Israel, a soluçar, partiram.
Manuel Joaquim Dias,
Apotheose Humana, Horta, Typ. de O Telegrafo, 1907.
Manuel Joaquim Dias (1852-1930), funcionário público, jornalista, poeta, nasceu, residiu, trabalhou e morreu na cidade da Horta, ilha do Faial.
Image from MOMA’s Collection (http://metmuseum.org/collections/search-the-collections/90061264)