Morreu o médico que era mais famoso que o Dr. House em Vale de Cambra
24.10.2012 – 14:40
Por Sara Dias Oliveira
O PUBLICO
Por videoconferência, dos Estados Unidos para uma aldeia de Vale de Cambra, usava couves-galegas, batatas, lâmpadas, milho e pêras para explicar como funcionava o corpo humano ao povo de Cavião. Nas suas palavras, propositadamente afastadas dos termos técnicos, os seios eram cachos de uvas, o estômago uma gaita-de-foles, o intestino uma mangueira, a próstata uma castanha. De bóina preta, símbolo das origens humildes origens, que fazia questão de manter na cabeça, recorria à linguagem do meio rural para falar de saúde. Fazia-o quinzenalmente à sexta-feira, em consultas gratuitas por videoconferência que oferecia aos conterrâneos que se instalavam no museu-biblioteca que tem o seu nome em Cavião, no alto de Vale de Cambra.
O médico que jurava que Cristóvão Colombo era português, e que inspirou Manoel de Oliveira a realizar um filme sobre essa tese e a sua própria faceta de incansável historiador, morreu no domingo vítima de ataque cardíaco. Será sepultado amanhã em Bristol, nos Estados Unidos. Tinha 86 anos.
A partir do seu consultório em Bristol, sempre disponível, Luciano da Silva, uma espécie de “Dr. House” rural, falava das maleitas do corpo e da alma e de tudo o que lhe viesse à cabeça. Do outro lado do computador, mostrava desenhos, aproximava-se do ecrã para ver com detalhe borbulhas ou exames das gentes da sua aldeia. Ralhava quando necessário, aconselhava com humildade. A partir de certa altura, as consultas estenderam-se à Santa Casa da Misericórdia de Vale de Cambra e ao Museu Regional de Oliveira de Azeméis. Além disso, participava em programas nas rádios e televisões de língua portuguesa nos EUA. Estava reformado há 14 anos. Mas isso não se notava muito.
Homenagem ao médico-historiador
“Um médico não deve estar só no consultório a passar pílulas e cápsulas. Um médico é um indivíduo com muita responsabilidade, não só no consultório, mas também na comunidade”, dizia ao PÚBLICO em Setembro do ano passado, momentos antes de mais uma sessão que duraria até bem perto da meia-noite. Naquela noite, falou de varizes, dos tijolos que devem ser colocados na cama para elevar as pernas, de uma conferência de Bill Gates. Ensinou a fazer caldo-verde para ajudar na prisão de ventre.
A consulta desta sexta-feira, a partir do outro lado do Atlântico, estava marcada. Era sobre fibromialgia. Afinal, em vez de consulta, haverá uma missa de sufrágio na Igreja de São Pedro de Castelões, às 19h. Depois, às 21h, hora em que o computador transmitiria a sua imagem, o médico de Cavião, que aos 12 anos decidiu ser médico, terá direito a uma cerimónia evocativa.
Em 14 horas, Pedro Laranjeira, coordenador do Museu-Biblioteca Manuel Luciano da Silva, recebeu mais de 400 telefonemas e cerca de dois mil testemunhos por email. “É absolutamente impressionante o prestígio que este homem tinha”, comenta. O museu-biblioteca continuará de portas abertas. “A grande obra de um grande homem não pode morrer com ele.” A 17 de Outubro, o médico-historiador enviou dos Estados Unidos mais uma encomenda para Vale de Cambra: dois filmes, em versão portuguesa e inglesa, realizados pelo médico. Chegaram a Portugal esta segunda-feira, um dia após a sua morte.
“Quem são os historiadores que usam microscópio? A História de Portugal devia ser revista por médicos”, dizia-nos Luciano da Silva, há pouco mais de um ano. A História sempre foi uma das suas maiores paixões. Garantia que Colombo tinha nascido em Cuba, no Alentejo, e que os portugueses foram os primeiros europeus a colonizar o continente americano – baseava-se nas inscrições da Pedra de Dighton que acreditava desvendar mistérios sobre as descobertas lusitanas nos sécs. XV e XVI. Escreveu livros sobre o assunto. Lutou para que a Pedra de Dighton fosse retirada da água e assim foi criado um museu em Massachusetts. “Olhe que ter uma pedra de 40 toneladas como amante não é brincadeira nenhuma”, brincava.
Aos 19 anos, partiu com a mãe para Brooklyn para se juntar ao pai, piloto da Marinha americana. Formou-se em Ciências Biológicas na Universidade de Nova Iorque. Regressou a Portugal com 26 anos e tirou o curso de Medicina em Coimbra em cinco anos e com distinção. Voltou aos EUA. Teve dois filhos. Durante 21 anos foi director da Rhode Island Veteran”s Home, em Bristol. Foi condecorado com o grau de Oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 1968 e com o Grau de Comendador da Ordem de Mérito em 2011.
De O PUBLICO
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