Marcolino: Candeias ou Estrelas?
Olho para essa obra de arte que é a Felix et amici cena, do nosso Leonardo, queria dizer Marcolino, e pasmo sempre. É verdade que estou ali no lugar de Judas e poderia ficar melindrado, todavia alguém havia de lá estar. Não é uma dos meus defeitos ser traidor, mas prontes! Fica pelos outros que tenho. Olho para o quadro – dizia eu – e admiro a criatividade, até na legenda. Regresso no tempo à Califórnia (Tulare) onde tantas vezes nos encontrámos no mais genuíno convívio humano, literário e cultural açor-americano, com o Marcolino no seu melhor porque inteiramente à vontade, ali fora da ilha onde há sempre que manter a compostura social inerente aos cargos que as pessoas ocupam. Senão, lá se vai a autoridade. Foi por isso que ele só aceitou incarnar a personagem do Joe Canoa, magnífica criação sua, durante 30 segundos numa entrevista que lhe fiz numa série de programas gravados no início do milénio para a RTP-Açores. Mas quando liberto por inteiro no convívio de amigos próximos e no espaço aberto da longínqua Califórnia, o Marcolino revelava o grande artista que tinha dentro de si – o mesmo que em Montréal escrevera um dos meus poemas favoritos, verdadeira obra-prima que tantas vezes recito para públicos vários, às vezes traduzido em inglês (se bem que sem o mesmo efeito de beleza do original): "Aqui não tem sabiá".
Foram grandes anos de uma dinâmica criativa singular, e de uma solidariedade ilhoa açor-americana (este ‘americana’ inclui o Canadá e o Brasil) que assinou belas páginas de literatura viva, de autoria de uma geração que deixou entretanto de ser jovem, mas deixou também muita, muita juventude nos seus livros, tanto que muitos deles ainda pouco ou nada envelheceram. O Marcolino assinou poemas e estórias que entraram na nossa memória colectiva (ainda bem novinho, no liceu da Horta, quando um professor lhe perguntou o nome ele respondeu: Não tenho. Ontem fui dar o nome para a tropa!), como a “história de Lázere” e “o jogo do malão”. A sua criatividade transbordou ainda em outras formas, de que é exemplo essa ceia de amigos presidida pelo nosso saudoso Emanuel Félix. Levam todas uma assinatura de ficar: Marcolino Candeias.
Onésimo Teotónio Almeida
______________________________________________
A LUZ DO POETA MARCOLINO CANDEIAS
«Seja como for, recusar-me-ei sempre a acreditar. Os poetas não adoecem, não tratam os médicos por doutor, não creem no poder hipnótico dos remédios. As suas dores são outras. Elas tangem dentro deles como sinos à distância. O poeta Marcolino Candeias ouve os sinos do universo através de um búzio do mar, onde cada verso seu é um bater de onda, um rolo de espuma com rodas a descer à orla da praia. O silêncio mora oculto dentro da sua cabeça. O poeta vive porque sonha, e a vida dos sonhos do poeta Marcolino Candeias vai pelo espaço fora, atravessa a chuva, passa para além das nuvens e encontra a luz perpétua da estrela que a nós nos falta. Entra nela por acrescento da própria luz, faz-se caminho, abre-nos os braços como quem está desde sempre à nossa espera.»
João de Melo
(Lisboa, 7 de Fevereiro de 2016)
____________________________________________
Nada é certo.
Talvez por isso mesmo nos reuníamos em redor de uma mesa divagando sobre palavras, delas nos socorrendo para falarmos de Verdade ou Poesia ou Liberdade, sabendo que, fazendo-o, procurávamos entender dos valores e comportamentos do Homem no mundo que é o nosso. E em nosso Tempo. Há desses dias, nos mais diversos e múltiplos registos, o compromisso da fraternidade e entrega em vários testemunhos.
O mais célebre será um retrato da Última Ceia. Não a de Leonardo da Vinci, nascido em Anchiano, no ano de 1452. Muito menos na de Tintoretto. Ou numa outra de Dali. Mas na de Joe Canoa, nascido, também, em 52, mas quinhentos anos depois num lugar que dá por nome de Cinco Ribeiras. Nada é certo. E dizem-me, agora, que Joe Canoa nunca existiu. O verdadeiro Mestre da Obra chama-se Marcolino Candeias, o derradeiro filho da Geração Glacial. Afinal, complicado. Por isso digo que nada é certo.
Ivo Machado
Porto, 3 de Fevereiro de 2016
Lembro-me às vezes das palmeiras de Tulare sob o intenso brilho do sol. Um breve restolho, arrastado pela brisa, transfigurava-as. As suas folhas sugeriam espadas cintilantes contra o azul do céu, ao mesmo tempo que se libertava delas um rumor de solidão, espécie de misticismo e olvido alcançando o fim da tarde. A sua brancura, no entanto, a árdua impregnação solar recordam-me de repente Helen Keller: «Mantém o rosto ao sol e nunca verás as sombras.» Nesse tempo, éramos uma tribo de palavras e trazíamos no segredo das mãos um templo de afectos.
Recordo o que mais vivamente me ficou da última vez que lá estive: o Álamo Oliveira e o Vasco Pereira da Costa a lerem poesia como dois inspirados tenores; o Emanuel Félix, o enorme poeta, sempre tão menino e tão distraído, como naquele momento em que achou a sala escura sem ter-se apercebido de que se tinha esquecido de tirar os óculos de sol; o Pedro da Silveira, sagaz, cáustico, maravilhoso, a falar de improviso como um grande senhor das palavras e da comunicação; e o Marcolino Candeias, sozinho no imenso palco da noite a fascinar a audiência com o humor de Joe Canoa, personagem da sua criação e que levou a sala a ajoelhar-se, rendida, aos seus pés numa prestação a confirmar a tese de Thomas Mann de que o riso é um raio de sol da alma.
Anos de música, viagens, encontros. Marcou-me esse * itinerário das gaivotas, único, inesquecível, eterno. Não digo, afirmo: Em cada um de nós havia uma ilha rodeada de fulgor. E a amizade que nos unia foi mesmo um pedaço de mar encostado ao coração.
*Título de um livro de Álamo de Oliveira
Lugar dos Áceres, 6.2.2016
Eduardo Bettencourt Pinto