Fui apanhado de surpresa com a notícia da morte da Maria Aurora. Com um nome daqueles e a energia que a gente lhe conheceu, nunca se imagina possível o pôr-de-sol, nem muito menos o fim.
Noutro lugar falarei dela como mulher, como escritora. Aqui, neste blogue açórico, resumir-me-ei a uma faceta da sua plurifacetada energia criadora.
Em finais do último milénio e princípios deste, a cidade do Funchal, desempenhou um lugar pioneiro no estabelecimento de pontes culturais entre os arquipélagos da Macaronésia. Como se simbolicamente planeado, tudo começou sob o impulso da energia afectiva e a inteligência emocional dessa mulher, anunciando uma aproximação até aqui nunca acontecida entre as ilhas da Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde. De seu nome completo Maria Aurora Carvalho Homem, madeirense por escolha e adopção, foi a alma e o motor de um projecto ambicioso, inovador e, diga-se mesmo, algo visionário. Com o patrocínio da Câmara Municipal do Funchal e do seu Departamento de Cultura por ela dirigido, realizou-se na cidade-anfiteatro-sobre-o-Atlântico um colóquio anual reunindo ilhéus e insulófilos interessados na compreensão e aprofundamento das realidades insulares comuns. Privilegiando a literatura como espaço por excelência da expressão do imaginário de uma sociedade, mas estendendo-se a outras áreas como a arte, a história, a antropologia, a sociologia e a cultura no seu sentido genérico, os lemas anuais desses encontro fornecem-nos uma imagem do espírito que os anima: As Ilhas e a Mitologia (1997); Cultura de Periferias, Insularidade (1998); Permanência e Errância (1999); Caminhos do Mar (2000); Escritas do Rio Atlântico (2001); Escritores e Cidades – Dos passos em volta (2002) ; Leituras do Olhar (2004); Arquipélagos do Desejo (2005); Ilhas (2006); e ainda Arquitecturas do Afecto e da Memória (2007). Os tópicos, como se vê, giraram todos em torno do imaginário insular, mas por si só não revelam a amplitude geográfica por eles abrangida. Foram sistematicamente convidados, além dos participantes madeirenses, escritores e estudiosos dos Açores, de Cabo Verde e das Canárias, incluindo alguns naturais dessas ilhas mas residentes no estrangeiro. Nos últimos anos, representantes de S. Tomé e Príncipe e até mesmo da ilha de Santa Catarina, no Brasil alargaram ainda mais os horizontes do espaço de afectos em torno de uma comunidade insular atlântica na periferia da Macaronésia.
Desde os tempos imemoriais em que as ilhas da Macaronésia constituiam um todo, nunca estes arquipélagos devem ter estado tão próximos, exceptuados porventura os anos das explorações marítimas portuguesas em que eram portos quase de paragem obrigatória fomentando assim um intercâmbio assíduo.
Perguntar-se-á: mas o que pode resultar de tudo isso? A resposta optimista deve ser: Quem sabe? A história está repleta de ideias lançadas por poetas e outros sonhadores, esses criadores de mitos por excelência e até mesmo por definição etimológica. A Maria Aurora era também poeta (e contista notável), mas acresce-lhe uma dimensão muito prática a permitir-lhe realizar uma actividade cultural que se estendeu da televisão (cobrindo todo o mundo lusófono na Rádio-Televisão Portuguesa Internacional) até à intervenção in loco requerendo atenção especial aos pormenores de organização, pés na terra e mão no orçamento, para as contas chegarem direitas ao fim.
Essa dualidade de mulher–poeta, contemplando possíveis, e mulher–mãe, agarrada à terra, rodeada de laços de afecto, de carinho pela ilha que adoptou e pelas ilhas vizinhas, permitiu-lhe o desempenho desse papel de construtora de pontes, ou mesmo de correctora de cartas geográficas, forjando um novo mapa, encurtando mares e aproximando estas ilhas afortunadas deveras por terem alguém com o seu espírito, o seu entusiasmo e a sua garra.
Por tudo isso e por muito mais o meu obrigado é imenso e a saudade ainda maior.
Onésimo Teotónio Almeida
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Comunidades
17 jun, 2010, 05:18
Maria Aurora, quatro arquipélagos numa ilha de força, criatividade e afectos- Onésimo Teotónio Almeida
"Como gostaria de lhe dar ainda mais um abraço, dizia eu ao Leão, para Cabo Verde há pouco. Ver-lhe uma vez mais aquele sorriso imenso, magnânimo e caloroso."
Onésimo T.Almeida,
escritor e professor da Brown University(RI/EUA)
por email,
11 de junho de 2010