Mário Cabral em entrevista sobre a sua tese «Via Sapientiæ» – Filosofia, Sabedoria e Santidade
Mário Cabral dispensa já apresentações entre nós e não só. Ainda assim é difícil caracterizá-lo, mesmo para quem o conhece. Escritor, filósofo, pensador, pintor, cronista, comentador televisivo, professor, humanista e católico convicto, Mário Cabral parece ter saído da era Renascentista tantos são os seus interesses e talentos, não fora a sua faceta de artista contemporâneo e atual. A profundidade e seriedade do seu pensamento e da sua espiritualidade contrasta, aparentemente, com o ar arrojado e liberal do seu temperamento artístico. Mas Mário encara essas duas facetas apenas como partes integrantes da sua personalidade, "como uma árvore", diz, com as raízes profundamente vincadas na terra, mas com os ramos espraiando-se em busca de mais horizonte.
Sandra Bessa (SB): Quando começaste a colaborar com a União já tu estavas de licença sabática. O tempo voa, amigo! Quanto tempo passou desde então?
Mário Cabral (MC): Referes-te aos trabalhos de Doutoramento? Desde que comecei até agora passaram oito anos. É verdade que fiz duas interrupções e que, em bom rigor, só estive de bolseiro durante quatro. Mas este tipo de investigação preenche a cabeça duma pessoa por inteiro. Tinha 35 anos quando comecei e tenho agora 43; nota-se mais dito desta maneira.
SB: Mudaste, entretanto?
MC: Oh sim, muitíssimo! Fazer uma tese de Doutoramento em Filosofia pode ser uma mudança radical de vida. Amadureci tanto!
SB: A propósito, não deve ser fácil fazer uma tese de Doutoramento em Filosofia… Escreve-se sobre o quê? Inventa-se um sistema filosófico novo?
MC: É curioso que muitas pessoas me perguntam o mesmo. Isto deve estar relacionado com o facto de continuarmos a relacionar a Filosofia com a busca do Sentido para a existência. Porém, hoje em dia, ela é mais tida por uma técnica de bem pensar, vamos dizer uma ginástica mental, em analogia com a educação física, para o corpo.
SB: Estava a pensar no Ph D americano…
MC: Pois, «Doctor of Philosophy». Todos os Doutorados anglo-saxónicos são Ph D… Voltando à tua questão: faz-se uma tese de Filosofia como se faz outra tese qualquer: escolhe-se um tema ou um autor e trabalha-se analiticamente ou hermeneuticamente o assunto. Hoje em dia usa-se mais a palavra «dissertação», de modo a evitar este imbróglio.
SB: Mas, se bem te conheço, fizeste uma tese, à moda antiga!
MC: A minha primeira arguente começou por dizer que estava diante duma tese, e não duma dissertação, o que há largos anos não lhe acontecia. Gostei, não há como escondê-lo.
SB: Como é que correu a defesa? Quem te conhece sabia que só poderia correr bem, apesar dos teus sobressaltos enquanto o pior crítico de ti próprio.
MC: Agradeço esta confiança das pessoas amigas. Porém, eu sabia que levava uma tese complicada, difícil de ser aceite pela cátedra. Em algumas secções, o estilo, de tão desusado, poderia ser tomado como provocatório. Assumi todos os riscos, mas sabia o peso dos riscos que estava a assumir.
SB: Sobre o que é que trata esta tese, então?
MC: O meu ponto de partida é a obra de três pensadores portugueses contemporâneos…
SB: Existe filosofia portuguesa?
MC: Aí está: logo à partida tinha este velho cavalo de batalha: há ou não há filosofia portuguesa? Não será melhor falar de pensamento?
SB: Agostinho da Silva é um dos três, sem dúvida… e os outros dois?
MC: Delfim Santos, que foi por onde comecei a estudar; e Teixeira de Pascoaes, um poeta! Dos três, só Delfim Santos pode ser chamado de filósofo pelos puristas.
SB: Estou a ver… Uma tese de Filosofia sobre não filósofos!
MC: Pior: uma tese de Filosofia sobre três autores que explicitamente declaram que a Filosofia deve dar lugar à Sabedoria. Por isso o meu título é: «Via Sapientiæ: da Filosofia à Santidade».
SB: Um poeta que não quer ser filósofo e que escreve sobre os maiores santos da Cristandade…
MC: Exato. Os três autores são perentórios ao afirmar que o primeiro contacto com o mundo não é epistemológico, mas sim afetivo. Opõem-se frontalmente a todo o tipo de identificação do ser com o pensar. Têm quase como pecado a transcendência dum sujeito face ao mundo tomado por objeto. Temem a linguagem geomético-matemática quando esta aniquila a linguagem espiritual, mais persuasiva do que dedutiva, mais simbólica do que concetual.
SB: Trocando por miúdos, sr. Doutor…
MC: Desculpa. Há um grande contraste formado entre a razão abstrata e teórica, ao estilo grego e alemão, e a vontade livre, de tradição cristã, que Delfim Santos relaciona diretamente com a responsabilidade face ao Outro que está à minha frente. Só há conhecimento investido na e pela ação. A nossa filosofia é toda virada para a experiência, para a prática moral e política, para a ação. Vejo em tudo isto a influência subterrânea do Cristianismo.
SB: Ou seja, não temos nada a ver com o estilo de pensamento grego e alemão, é isto? Afinal Agostinho da Silva era contra a nossa entrada na Comunidade Europeia.
MC: Correto. Talvez seja dos três aquele que tem uma consciência mais aguda da nossa essência de portugueses, temendo pelo assalto estrangeiro que, de vez em quando, nos ameaça. E esta nossa doença, insuportável, de acharmos que tudo o que vem de fora é que é bom, quando temos no sótão tesouros a criar pó e teias de aranha!
SB: Disseste ainda agora que tínhamos um pensamento prático… quem diria!
MC: Sim, sim! Tem a ver com os Descobrimentos – então e o «Vi claramente visto» e o «Vejam agora os sábios na Escritura»?! E a nossa diplomacia sempre foi reconhecida… E fomos grandes especialistas em Aristóteles… Suspeitamos das grandes abstrações, e ainda bem!
SB: Afirmas que a filosofia portuguesa tem, portanto, uma natureza predominantemente social e política. Podes desenvolver?
MC: A terceira parte de «Via Sapientiæ» chama-se "A Concretização do Reino" e é dedicada à política. Filosofias práticas, como são as dos autores que estudei, preocupam-se verdadeiramente com os destinos da comunidade humana, pelo que se pode muito bem concluir que, no fundo, o meu trabalho se enquadra dentro da filosofia social e política. Esta preocupação refere-se ao sofrimento concreto de alguém com rosto próprio e toca no coração e não tanto na racionalidade. Visa a paz e a alegria da relação fraterna; por isso as minhas palavras-chave são: AÇÃO, CORDIALIDADE, PORTUGAL, REALIDADE e SANTO. O outro interpela-me, está à minha frente, não o posso pôr em dúvida ou reduzi-lo a uma qualquer indecisão epistemológica; seja ela qual for, a certeza intelectual é sempre mais fraca do que esta interpelação urgente que eu sinto no fundo do meu coração e que me faz verdadeiramente homem. Perdendo, neste agir corajoso, aquilo que, supostamente, os gregos disseram ser a minha identidade («O homem é um animal racional») acabo por me encontrar na magnificência remota e, ao mesmo tempo, mais futura do meu ser: o meu transcender-me.
SB: Isto não é bem aquilo que entendemos por política hoje em dia…
MC: Concordo, mas lamento. A política à séria é uma questão amorosa, diria Agostinho da Silva, que conhecia muito bem o nosso culto do Espírito-Santo, ao qual fui buscar a inspiração deste meu subtítulo.
SB: Mas isso não é uma fantasia utópica?
MC: Mesmo que não fosse evidente que a lei verdadeira é a lei do Amor, era mais inteligente optar por ela, como se se tratasse apenas dum postulado que leva mais longe. Uma teoria é tanto melhor quanto testada pela evidência empírica moral e política. Mesmo que possa ser entendida como "ficcional", é preferível uma ficção que floresce no Bem efetivo do que uma lei científica que conduz ao mal efetivo. Nem tudo o que é racional é razoável, tal como nem tudo o que é possível é desejável. Bem vistas as coisas, reside aqui a passagem da consciência lógico-dedutiva – a velha dianoia – à noêsis: a metanoia.
SB: E onde é que entra o santo?
MC: Os três autores que estudei consideram o santo como o ideal de humanidade. Poderá o filósofo ser santo? Não é preciso que seja, insiste Agostinho da Silva, precisamente o mesmo autor que é o maior apologeta do sacrifício.
SB: Como definem o santo e a santidade?
MC: Lembras-te da «Alegoria da Caverna», de Platão? O filósofo é aquele que se liberta da ignorância e se encaminha, por diversas etapas, até ao "etéreo céu", para usar uma metáfora dum poema de Teixeira de Pascoaes. O santo é o filósofo que desce à caverna para ajudar a libertar os seus irmãos.
SB: Então o filósofo deve transformar-se em santo.
MC: Quantas vezes o filósofo se recusa a descer! É por causa da famosa soberba de muitos filósofos que estes autores parecem desprezar tanto a filosofia. Mas interessa perguntar se um filósofo que não percorre a via sapientiæ, isto é, que não desce do etéreo céu, será, de facto, um filósofo. Por outras palavras, a filosofia é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos filósofos.
SB: Mas há muitos santos que nunca foram filósofos…
MC: É possível chegar à santidade sem a filosofia; porém, que disciplina, melhor do que a filosofia, pode destrinçar os falsos saberes da Verdade, analisando, com aquela cientificidade exigida por Agostinho da Silva, a linguagem equívoca, o reducionismo das propostas, o perigo das consequências reais deste ou daquele princípio teórico?
Não é preciso que o filósofo seja santo, embora custe a aceitar que a razão não se abra ao espírito, que a dianoia (ciência) não dê o salto para a noêsis (espiritualidade), que o cientista não dê lugar ao sábio. O sábio já vive um estado de sôphrosynê (Serenidade) muito próximo da contemplação mística. Teixeira de Pascoaes refere-se quase sempre a este santo estoico que se consola nas alturas rarefeitas do etéreo céu; mas termina por compreender que o mártir é o santo por excelência, na medida em que tudo sacrifica à lei inalienável da compaixão.
SB: O que vais fazer agora com esta tese?
MC: Comecei por referir o que esta tese fez por mim, o que foi incalculável. Quanto ao resto, veremos… Tinha gosto em ir para um pós-Doutoramento sobre as questões que ficaram em aberto. Gosto mesmo é do trabalho de investigação… Veremos… Eu pertenço a uma cultura que se põe alerta aos sinais dos tempos… Menos importante do que a minha vontade é aquilo que eu devo fazer. Veremos… Estou atento.
01/07/2006
Entrevista por: Sandra Garcia Bessa
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EXCERTO DA CONCLUSÃO: «A Utilidade da Filosofia», pp.519/520:«A vida não pode ser apenas isto – isto de factum, isto de fatum, tragédia que a razão enlouquecida para nós próprios inventa, à guisa de pesadelo incontornável, castigo sem culpa, pese embora no profundo do nosso ser permaneça a esperança doutro mundo, que sentimos merecido. ‘Eu vinha para a vida, e deram-me dias’, proclama Ruy Belo em verso inolvidável.Pensar não é apenas raciocinar e viver é muito mais do que pensar e não podemos definhar, escravos de nós próprios, sem fazermos nada contra um cancro evidente. Não somos pedras, por mais respeitáveis que as pedras sejam. Não resistimos sem olhar para o céu estrelado acima de nós. Mesmo que não houvesse mais do que factum e fatum, a vontade livre deveria insurgir-se contra tal realidade, desajustada ao impulso mais radical do humano, que se lança do futuro aberto que concretiza a memória recôndita de pertença ao sentido absoluto.A filosofia deve ajudar o espírito a reinventar a alegria e a esperança, sol aberto duma tarde estival que já conhecemos quando infantes. A filosofia é um instrumento transitório e não um estado de espírito permanente […] Ao contrário do que pode parecer, este livro ainda se encontra no domínio filosófico, sendo a transitoriedade do seu subtítulo para levar a sério. No fundo, trata-se nestas páginas do maior elogio possível à filosofia, salvando-a da manipulação tecnicista à qual tem sido votada desde que vive encarcerada nas universidades, para benefício dos poderes instituídos deste mundo. Ela nasceu com ambições maiores […]».
Por: Irene Maria F. Blayer