RENTRÉE
A rentrée quase que exige a sugestão duma leitura. Há um livro que a merece: é “Nem Tudo no Mar é Água”, de Ana Paula Martins Goulart, que acabou de sair na “Companhia das Ilhas”, “Colecção Transeatlântico”, número dezassete.
É um relato de memórias da infância da autora, nas ilhas do Faial e Pico. Pode ser lido como um romance, embora os capítulos tenham a independência de crónicas; aliás, a autora não é uma escritora, embora este livro possa ser considerado literatura. A propósito, a autora escreve bem, enquanto há escritores que nem por isso.
Não é fácil falar da realidade regional sem laivos etnocêntricos e trejeitos delicodoces do género: “Somos muito pequeninos e ultraperiféricos mas os melhores do mundo e é injusto não saberem da nossa existência”. Esta autora consegue que leiamos este livro como se fossem histórias de uma criança da Dinamarca ou da China, isto é, trata-se de um texto verdadeiramente universal.
Estão lá as nossas brincadeiras da infância, as nossas cantilenas, o nosso vocabulário (o livro traz um glossário, no fim), a nossa mundividência. Todos nós, açorianos, que fomos crianças antes do 25 de Abril, nos reconhecemos aqui. Todavia, tudo flui com toda a naturalidade, sem aquela sensação de obrigatoriedade académica em esgotar o tema.
Não é fácil falar do mundo da infância sem desrespeito pela integridade da criança enquanto ser em si, e não como adulto imperfeito. Ana Paula Goulart é de tal modo exímia neste campo que muitas páginas deveriam ser usadas nas aulas de Filosofia para Crianças (sirva de exemplo o Cap.3: “Carnaval”, mas há muito mais). São muito poucas as vezes em que se esquece de ser a criança que foi, assumindo a voz da adulta que agora é – e estas ocorrências são defeitos da narrativa, porque introduzem uma indeterminação que retira robustez e consciência literária (pp. 80-82, por exemplo).
Mas aquilo que verdadeiramente torna esta leitura altamente recomendável é a felicidade que transborda por cada página. Não há ressentimentos, nem traumas, nem dedos apontados a seja quem for. É, neste sentido, um texto redentor; é, em todos os sentidos, um texto redentor, conseguindo, Ana Paula Goulart, transmitir ao leitor a sua paz interior, a sua metanoia, o oiro do primeiro contacto com o mundo, recolhido ao entardecer da vida.
É um discurso acerca do amor, do amor pleno sobre todas as pessoas e todos os seres: as ilhas, o mar, os cães, os gatos, os coelhos; a pesca, os pobres e os ricos, sem justificações complexadas (diz-se sempre “criadas”, em vez do politicamente correto, mas falso, “empregadas”). Tudo é aceite com bonomia, tudo. Não há sentimentos negativos neste livro, o que não significa que a autora siga a teoria do Bom Selvagem, mas apenas que aceita a realidade tal e qual ela é, e é assim que a ama.
Em termos estritamente literários, poderia haver maior economia e uma composição mais organizada. Mas, em boa verdade, nunca se percebe se Ana Paula Martins Goulart quer fazer literatura, ou apenas relatar a vida, sem artifícios. Está no seu pleno direito e talvez tenha feito a melhor escolha, aquela que nunca lhe será tirada.