BIBLIOTECA
Mário T Cabral
“Clavis Bibliothecarum” é o título de um livro estupendo que acabou de ser publicado em Portugal pela Conferência Episcopal Portuguesa / Bens da Igreja. Da autoria de Luana Giurgevich e Henrique Leitão, trata-se de uma coleção de catálogos e inventários de livrarias de instituições religiosas em Portugal até 1834, ano da supressão e expulsão das ordens monásticas.
Para que se entenda a raridade do projeto, basta informar que mais nenhum outro país do mundo tem algo semelhante (apenas a Baviera nos acompanha neste luxo). É uma obra de consulta de valor inestimável nas mãos dos estudiosos mas, o mais provável, é não vir a interessar ao grande público, o que é uma pena, dadas as conclusões políticas que dela se podem extrair.
Para que se tenha uma ideia da dimensão, basta referir que uma boa biblioteca particular andava pelos cinquenta volumes, quando as bibliotecas dos mosteiros são consideradas pequenas se têm apenas dois mil volumes! Havia pelo menos dez bibliotecas consideradas muito boas, isto é, com cerca de vinte mil títulos! Era comum os particulares doarem as suas bibliotecas aos conventos, temendo pela sua estabilidade; com efeito, a perpetuidade da família conventual não se compara à da família natural, e nem mesmo à das universidades.
Poderia dizer-se: mas só os monges liam; os leigos não liam. Mentira! Esta obra prova que havia imensos visitantes para ler – tantos que houve a necessidade de escrever regulamentos para os empréstimos… e chegaram-nos muitos destes regulamentos. Logo, havia uma rede de leitura em Portugal, muito antes da Gulbenkian.
Outras informações trazem um sabor anedótico. Por exemplo: grande parte dos livros existentes no convento não paravam nas bibliotecas; ora estavam na capela, para uso das práticas litúrgicas, ora estacionava na cela dos monges, durante quase toda a vida destes. A queixa de que os livros não são devolvidos é constante, a ponto de quase haver uma festa quando um frade morre, única forma de reaver os volumes que tinha levado para o quarto.
Lá houve a necessidade de regulamentar a prática dos empréstimos. A regra mais engraçada é aquela que autoriza que se empreste “tantos livros quantos o frade possa abraçar”. Havia frades que faziam negócio com livros, vendendo-os à socapa para fora. Também se pode saber, com rigor, o que liam as freiras, e aquilo que não podiam ler.
Todo este tesouro vai tremer às mãos dos liberais. A catástrofe portuguesa não tem comparação na Europa. Vão fechar conventos, desviar bibliotecas; há os roubos, os assaltos; os depositários não sabem o que têm em mãos e a incúria é de bradar aos céus. Exemplo: o convento de S. Francisco, em Lisboa, onde agora funciona a faculdade de Belas-Artes, tinha uma das melhores bibliotecas de Portugal. Ficou lá… mas em quartos sem teto, ao relento!
Quase que se ouve a voz desesperada dos bibliotecários, que relatam a destruição: “E tínhamos este volume… e aquele…” E assim, a posteriori, nascem muitos dos inventários, porque “Casa roubada trancas de ferro”. Fora igual com as invasões napoleónicas. E o que havia e o bibliotecário já não se lembra? As comissões liberais inventariam uns quinhentos volumes e, depois, acrescentam: “há mais dois mil”. Ou seja, a conta que temos é feita por baixo!
Este livro tem um sabor de desforra. Repita-se: o editor é a Igreja Portuguesa! Onde está o obscurantismo?