FUNDAMENTO
Mário T Cabral, 16 de ABRIL AD 2017
O fundamento é determinante para a Filosofia. Trata-se do alicerce que justifica a credibilidade científica e, por isso, pode ser tomado como sinónimo de teoria da justificação.
O fundamento tem de ser transcendente, isto é, não pode valer apenas para o ser humano. Veja-se o caso da matemática: quando nos é ensinada, não nos apercebemos logo que não é coisa pessoal, e que vale para toda a Humanidade. Mas há um dia em que tomamos consciência de que ultrapassa, inclusive, a mente humana.
Quando é que as verdades matemáticas passaram a ser verdadeiras? Deixarão de o ser se os seres humanos desaparecerem? Não obedecem todas as máquinas às mesmíssimas leis da matemática e da lógica? Poderá um ET apresentar raciocínios lógico-dedutivos diferentes dos nossos?
Este pressuposto é fundamental para o trabalho científico. Como é que nós sabemos com exatidão a idade do universo? Não estávamos lá. Estávamos a milhões de anos luz de ter nascido, como espécie. Partimos do princípio que a matemática, a lógica e o comportamento da matéria, no tempo e no espaço, não dependem da nossa natureza humana.
Para além de transcendente, o fundamento tem de ser misterioso, para ser abran-gente. Há muito mais realidade para além da racional, o que não choca nada com a excelência da racionalidade. Pelo contrário: é a própria razão clara e distinta que exige que o fundamento seja de modo a justificar todo o existente. Tem de ser único (senão teríamos de procurar outro, ainda anterior) e não pode deixar nada de fora (senão tinha de haver outro, o que seria contraditório).
Por exemplo, os sentimentos não carecem de justificação racional; nem o gosto, nem a vontade e a liberdade. Para além dos qualia, a vida também não exige justificação racional – e o sentido para a existência é meta-físico, ou seja, não físico.
Misterioso não significa irracional; as pessoas são misteriosas e nem por isso inconcebíveis. Talvez que o melhor sentido de “misterioso” seja “inesgotável” e “imprevisível”, tal como se diz das pessoas, que são livres e criativas, bem diferentes das máquinas (que são regidas exclusivamente pela lógica e pela matemática).
Já se torna consequente que o fundamento tem de ser uma pessoa. Não pode ser doutro modo porque seria contraditório. Repetindo: é a razão, no uso das suas plenas faculdades, que assim o determina.
O fundamento tem de ser ritualizado, desde o começo. Não é uma mera ideia, que seja esgotada na escola. Embora possa e deva ser explicada com toda a exatidão do raciocínio, este, por si só, não treina outras faculdades humanas, determinantes para a ação. Para além de que é preciso não esquecer que o fundamento é uma pessoa e não se lida com uma pessoa como se fosse um princípio teórico.
É de péssimo gosto e quase obsceno quando a razão iluminista procura substituir o ritual das religiões, como no caso do positivismo comtiano ou dos rituais maçónicos, imitando o refinadíssimo cerimonial da Santa Madre Igreja (então se se pensar na igreja ortodoxa…), como a napa imita a pele genuína.
A filosofia e a ciência continuam a não ser o caroço das sociedades humanas, e assim deve continuar. Por maior que seja o valor destas disciplinas, elas são membros, não o coração. O chão duma sociedade saudável tem de ser religioso.
A arte também já tentou substituir a suposta morte de Deus; no séc. XIX, os poetas românticos arvoraram-se em profetas do novo tempo… deu no que deu: que tem a poesia para dizer, hoje em dia? Quem a lê? Onde está a salvação da arte? E já sabemos que o positivismo deixou de ter fundamentação e a ciência, tal como a vemos hoje, dá vontade de chorar.
Repare-se que toda esta reflexão é estritamente filosófica. Não é teológica e, muito menos, religiosa. Não é preciso ter uma gota de fé para a entender e discutir.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção, O Acidente, ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.