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Este conteúdo fez parte do "Blogue Comunidades", que se encontra descontinuado. A publicação é da responsabilidade dos seus autores.
Imagem de Mário T Cabral – O meu tio do Brasil
Comunidades 13 dez, 2017, 05:58

Mário T Cabral – O meu tio do Brasil

O  meu tio do Brasil 


Mário T Cabral,

O meu único tio ainda vivo tem cerca de noventa anos e mora em São José, na Califórnia, se bem que tenha saído da ilha rumo ao Brasil. Minha avó Maria das Dores tinha ficado viúva muito nova, com cinco filhos para criar. Meu tio José era o mais velho e, quando teve idade, procurou a sua sorte aqui, na terra em que agora me encontro, com grande emoção particular. 

     Só vi meu tio José duas vezes na vida: a primeira, quando tinha uns cinco anos e ele regressou à ilha para tratar das partilhas; a segunda, quando tinha vinte, e estava de luto pela morte de meu Pai. Mas não é por isso que a nossa relação é menos forte e continuo a falar com ele ao telefone com frequência. Ele nunca esteve fora do nosso coração, nem por um minuto.
     Ouvi muitas vezes contar, na minha infância, o modo como embarcara sem quase nada, com a sua viola à tiracolo. Naquele tempo, o barco fazia escala na ilha da Madeira e ainda guardamos um postal amarelecido que nos enviou de lá: um rapaz do povo atira-se da proa de um grande paquete ancorado. Aqui, meu tio trabalhou em açougues e leitarias, dormindo num quartinho dos fundos e fazendo entrega de encomendas, de bicicleta. Correu meio Brasil neste modo de vida, mudando-se de cidade para cidade. Certa vez, sofreu um acidente e teve de colocar uma rótula de prata, se bem me lembro; certo é que, nas vezes que nos visitou, brincava com o facto, exclamando: “Cuidado com esta perna, que é muito valiosa!”. Quando chegava perto do Carnaval, temíamos sempre pela sua sorte. Na nossa pequena ilha distante imaginávamos um sem número de perigos que o poriam em risco. Minha Mãe — a sua irmã mais moça — dizia-nos que as pessoas aproveitavam-se das máscaras para se vingarem.
     O que eu estou a tentar dizer é que, até à minha geração, o Brasil não era um país incógnito, nem tampouco um país de telenovelas. Muitos de nós, açorianos, tínhamos parentes aqui, como agora na América do Norte e no Canadá. Havia a Maria brasileira, a mãe dos meus amigos Daniel e Eduardo, que ainda hoje tem sotaque; havia o meu vizinho Manduca que, de vez em quando, ia lá passar as férias do Verão; havia a Gertrudes da Aldina, que vinha ajudar minha Mãe a lavar a roupa, no tempo em que não havia máquinas e nós éramos quatro crianças e minha avó já acamada. Não tenho a certeza se a mãe da Gertrudes era brasileira. Sei que ela fora criada num orfanato e talvez tivesse sido uma das freiras a ensinar-lhe uma quadra que ela se divertia a cantar a meu Pai — da quadra não posso esquecer-me, mesmo que quisesse; ainda nova, de mãos nas ancas, talvez para aliviar as dores do varadouro do tanque, ela fingia a pronúncia brasileira:

Quem foi que descobriu Brasiú
Quem foi quem foi?
Foi Sinhô Cabrau
No dia 1 de Abriu
Dois meses depois do Carnavau

     Meu Pai não queria dar-lhe confianças mas não conseguia deixar de sorrir, embaraçado; quanto a mim, sem compreender o equívoco, ficava a cismar como teria sido possível meu Pai ter descoberto o Brasil.
     O Brasil voltou com força à minha vida quando preparava a tese de Doutoramento, pelo facto de um dos autores que trabalhei ser Agostinho da Silva. É sabido como Agostinho da Silva insiste na convicção de que o futuro de Portugal não se escreve para os lados da Europa, antes na direção do mar, Brasil e África, sem paternalismos, mas como uma comunidade fraterna e cordial. Uma das ideias que desenvolvi prende-se com o culto ao Divino Espírito Santo e, à custa dela, recebi, na Casa das Tramoias, uma visita da Lélia Nunes, de Santa Catarina, que estava a fazer um documentário sobre este assunto para a televisão. No meio da conversa, e por causa do nome da casa da minha família, ela referiu-se a um género de renda de tramoia, típica daqui. Prometeu oferecer-me uma peça, e cumpriu a promessa, enviando-me o napperon que uso agora sobre a mesa do quarto de jantar.
     Por esta altura, recebi outra visita inesperada e quase milagrosa: certo dia, bateu-me à porta uma brasileira, que se apresentou como uma prima, neta da tia Clara. A casa onde eu vivo resulta de duas casas geminadas, construídas por dois irmãos que casaram com duas irmãs. Uma das irmãs era minha bisavó Gertrudes; a outra, minha bisa-tia- -avó Clara. O meu quarto atual corresponde à casa da tia Clara. Não vos consigo passar por palavras a comoção de ver aquela minha prima nova e muito velha descalçar os sapatos para, segundo ela, convulsionada até às lágrimas, pisar com os seus próprios pés o solo da casa que ela tinha por sua.
     E é aqui que eu volto ao meu tio José, que está a ficar um pouco demente, trocando os tempos e os espaços da sua longa existência. Há uns quinze dias, se tanto, ao telefone, e a propósito de uma visita de um dos seus netos e bisnetos, que eu nunca vira antes, perguntou-me se a casa ainda tinha cisterna. Esqueci-me de dizer que meu tio está sempre a brincar com o sotaque brasileiro, que lhe ficou gravado na memória como a cicatriz verdadeira da sua grande aventura da juventude. É o luxo dele; como ele se diverte quando me diz: “Ei, cara, tudo bêm?!”. A casa já não tem cisterna, tio. E luz elétrica, tem? Sim, tem, respondi, com a voz a falhar. Da primeira vez que ele lá esteve já tinha. Ao baixar o telefone chorei, com pena do meu amado tio, imaginando o que será passar uma vida inteira longe da sua raiz. Ele está sempre a dizer que pretende voltar, mas os médicos não aconselham, por causa do coração. Morreu a mãe e ele continuou a escrever e a telefonar à irmã; morreu a irmã e ele continuou a escrever e a telefonar ao sobrinho. Não descansou enquanto não mandou o neto ir em pessoa mostrar os seus filhos à Casa das Tramoias, como os pássaros que voam por sobre o Atlântico na época da procriação, como os elefantes e as baleias, que se diz voltarem ao local da origem. Uma vida longe — uma vida tão enroladinha dentro do peito.
     Quando ouço falar dos casais açorianos que vieram para cá penso logo em meu tio brasileiro. Imagino-os saudosos dos seus, deixados nas ilhas — e sei o que sentiram os parentes que ficaram nas ilhas, pois esta foi a condição de minha avó Maria das Dores, de minha Mãe Elvira… a minha condição. Já casado, na Califórnia, meu tio José mandava pedir a meu Pai, seu grande amigo, coisas das quais sentia a falta: um bidé, que os americanos não usam; um bote baleeiro para enfeitar a sua lareira… por sua vez, mandava-nos sacas de roupa e brinquedos. Alguns dos brinquedos da minha infância foram oferta de meu tio: um comboio elétrico que apitava — uh, uh, uh! — e que voltava para trás quando empeçava num móvel; um avião a pilhas que andava na pista; um canguru com bolsa marsupial para sua cria… e um barco parecido com o baleeiro que meu Pai lhe mandou de presente e sobre o qual caíram os meus olhos de infante. Tanto insisti que meu Pai mandou fazer um para mim. O meu era mais uma lancha, com a qual passava horas a brincar no tanque do jardim da Casa das Tramoias.
     Quando recebi o convite para vir ao Brasil foi tudo isto que me assaltou o espírito. Sou daquelas pessoas que não gosta de viajar. Nunca saí de Portugal e foi preciso fazer um passaporte para estar aqui. Agrada-me muito este facto de a primeira vez que saio do meu país ser para conhecer o Brasil. É-me muito difícil aceitar que esteja no estrangeiro; para além de tudo o que acabei de vos contar, para um escritor, um lugar onde se fala a língua com a qual ele trabalha não pode ser um país estrangeiro. E traz-me, ainda por cima, um projeto de geminação poética!
     Na verdade, não aconselho que a nossa relação se faça por fora, pela mão de políticos e homens de negócios. Não vejo mal nenhum em que o comércio cresça entre nós. O que procurei dizer foi que a direção do nosso relacionamento deve partir de dentro para fora, pois — pelo menos é esta a minha experiência —, não se trata de uma ideia abstrata ou de uma conveniência diplomática.      Estamos ligados pelas raízes e pelo sangue, pela língua, pelo coração e pela memória — e não por uma memória livresca, mas biológica, genética, como a dos animais que sabem o que devem comer e não comer, sem que ninguém lhes ensine.


InterDISCIPLINARY Journal of Portuguese Diaspora Studies
Vol. 2 (2013):111-115.    

                             

Mário T. Cabral  (1963-2017) Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). O seu livro O Acidente (Porto: Campo das Letras, 2007) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também foi pintor.

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