PARÁCLITO
Mário T Cabral, 28 de MAIO AD 2017
No verão de 1935, Simone Weil passou férias em Portugal com os pais. Vinha esgotada física e mentalmente do seu trabalho nas fábricas da Renault. Assistiu a uma procissão de velas numa aldeia de pescadores e ficou impressionada com os cânticos das mulheres. Escreveu: “Tomei plena consciência de que o Cristianismo é, sobretudo, uma religião de escravos; à qual os escravos não têm outra alternativa a não ser aderir, e eu entre eles.” Parece Nietzsche, mas repare-se que o sinal interpretativo é inverso.
A partir de então, aproximou-se cada vez mais do Cristianismo, a ponto de ter visões místicas de Jesus. Sempre fora sensível ao sofrimento da classe operária, tendo ido trabalhar para a fábrica de modo a ter uma experiência verdadeira do seu viver – ela, uma menina burguesa, que não tinha necessidade; e, quando tuberculosa, optou por morrer de fome, pedindo que dessem a sua comida aos que tinham fome.
Judia, com uma formação em Filosofia assistida por grandes professores, cultíssima, inteligentíssima, estava apta, como poucos, a compreender o “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vai ao Pai senão por mim.” Porém, não conseguia aceitar que houvesse ligação entre o Antigo Testamento e o Novo e, principalmente, que a Igreja fosse o corpo de Cristo, considerando-a a herdeira perversa da opressão do império romano. Nunca foi comunista mas rondou-lhes a casa (não é equívoco que muito cristão desmereça).
Outro parecido com ela foi Dostoievski. “Entre os filhos dum século maldito” – que é como Antero de Quental se refere ao século XIX – o escritor russo foi dos poucos que apostou na Tradição, que todos trocavam pela morte de Deus, anunciada pelo darwinismo. Os seus romances são obras geniais na compreensão das consequências advindas da vida sem sentido para o mundo e para a sociedade humana, de um céu que se enclausura, de novo, recusada a Transcendência. No entanto, odiava a Igreja, que acusava como a grande responsável da decadência ocidental, por causa do seu cinismo mundano.
Estes são expoentes célebres que encabeçam um grupo não pequeno de pessoas apaixonadas por Jesus Cristo mas com um ódio visceral à Santa Madre Igreja. É preciso dizer com muito transparência e firmeza: não compreendem completamente Jesus Cristo, ofuscados, quiçá, pela própria paixão adolescente… mesmo que se chamem Simone Weil ou Dostoievski.
Que pena! Mas que grande pena! Nosso Senhor Jesus Cristo – que tão entusiasticamente proclamam como o Logos ímpar – sempre insistiu que fazia um com o Pai do Céu e que não tinha mexido numa vírgula do AT. Por outro lado, ao subir aos céus, prometeu que não nos deixaria órfãos (como Platão se queixa, no “Fédon”, de ter acontecido com Sócrates), que nos enviaria um Paráclito, um Terceiro, que ficaria connosco até ao final dos tempos e que nos ensinaria toda a Verdade, que ainda não estávamos aptos a receber. Por isso, seria de toda a conveniência que Ele partisse para o Pai, inaugurando-se uma terceira época, a da Igreja, tal e qual.
Ou seja, a Igreja não é um apêndice de Jesus Cristo. Continua a ser assistida pelo Espírito Santo, que é tanto Pessoa como as outras da Santíssima Trindade. E ainda neste discurso da despedida, Nosso Senhor acrescenta: “Que eles sejam um, com Tu e Eu somos um”. O nosso Credo é claríssimo: somos mais do que cristãos, no sentido em que adoramos a Santíssima Trindade.
A questão é de saber se é possível ser-se apenas cristão, “a la Simone Weil”. Não é. Não tenhamos complacência com quem não entende a caravana de Deus, por mais brilhante que seja a mente. Tenhamos pena; estiveram quase lá, quase, quase. Mas se não disseram: “Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica” não perceberam verdadeiramente nada de nada. É uma questão tão filosófica quanto teológica: um sistema, seja ele qual for, não pode ser incoerente, a nível interno. Todas as suas afirmações têm de jogar lindamente umas com as outras, o que só a ortodoxia consegue.
Há também aqueles que nos atazanam com paranoia: “Onde é que isto está no Evangelho? Onde é que Jesus Cristo diz aquilo?”, geralmente a propósito de Nossa Senhora. Que não esteja! Pois se Ele garantiu que o Espírito Santo nos iria ensinar toda a Verdade, passo a passo!
Facto é que a Tradição conta! Não é dum dia para o outro que um homem entende as coisas de Deus! Algumas exigem séculos! Não somos assim tão inteligentes quanto isto, o trambolhão no Paraíso foi de monta!
O Espírito Santo também é Deus. Não tenhamos, em relação a Ele, a mesma reação que se deu no sinédrio e diante de Pôncio Pilatos. Tal como o Pai confirmou o Filho, quer durante o seu batismo quer no Tabor, assim o Filho confirmou o Consolador e a Igreja. O grupo dos hereges está cravado de intenções deveras pias.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção, O Acidente, ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.