Marta de Jesus (a verdadeira),
de Álamo Oliveira
Faz-se um percurso pelo romance de Álamo Oliveira e fica-nos o registo de um número de constantes ou núcleos de referência que permitem uma visão de conjunto e proporcionam um enquadramento inicial de Marta de Jesus (a verdadeira).
Efectivamente, desde o já distante Burra Preta com uma Lágrima (1982, 1.ª ed.), e para lá das diversificadas histórias e tramas desenvolvidas, Álamo Oliveira tem procedido a sucessivas configurações do espaço insular açoriano, melhor dizendo, de espaços insulares, pois já nesse romance inaugural as andanças da protagonista levavam-nos através de três ilhas, do Pico a S. Jorge e, finalmente, à Terceira. E mesmo naqueles casos em que, por razões diversas, as personagens são expulsas do seu chão e obrigadas a experiências de extraterritorialidade, há sempre um lastro insular a constituir-se como contraponto à realidade actual, seja como memória do vivido e da aprendizagem do mundo, seja como uma presença próxima no tempo que estabelece um diálogo entre ausentes e afastados; dito de outra forma, a ilha constitui nesses romances um ponto de ancoragem, mas também um pólo de irradiação narrativa, na medida em que constitui um lugar de onde e se projecta no percurso de quantos dela partem e pelo mundo se disseminam, num processo conflituoso de permanência e transformação. Isso acontece em Até Hoje (Memória de Cão) (1987), com a ilha, ainda que até certo ponto fora da história, a constituir uma espécie de refúgio e lugar outro para onde o soldado João se poderá transportar, escapando-se ilusoriamente ao tempo conturbado e sufocante da Guiné, com o cheiro e o rumor das suas mortes e guerras; de certa maneira é essa dualidade ilha-mundo que subjaz à família de José Silva/Joe Sylvia, de Já não Gosto de Chocolates (1999), repartida, geográfica e intimamente, entre os Açores e a Califórnia, com as suas abundâncias e constrangimentos. Se, no final, a ilha não será solução efectiva para ninguém (nem mesmo para João, que tendo sobrevivido ao pântano guineense não resiste ao sufoco insular e acaba também na emigração), isso já é outra história, que tem a ver com a fatalidade insular e com uma estética em que não há finais felizes.
Por outro lado, o romance de Álamo Oliveira atesta a preocupação do autor em diversificar os seus procedimentos técnicos e textuais, entre a representação de pendor realista e a ficção que deliberadamente se alimenta dos seus mecanismos e os exibe num jogo irónico de fingimentos e distanciações. Pátio d’Alfândega-Meia-Noite assenta na herança de um romance inédito deixado pelo Poeta Porrerinho e que Patachão, assumindo-se como testamenteiro, se encarrega de organizar e trazer a público: o seu trabalho de ordenação do texto de outro, em busca de uma sequência que dê lógica aos acontecimentos, os comentários que vai proferindo, bem como os acrescentamentos introduzidos ao longo da narrativa – tudo isso faz de Patachão um leitor privilegiado e até um co-autor, ao mesmo tempo que proporciona a ostentação do duplo plano de que a escrita, em geral, se sustenta enquanto criação autoral e leitura. E Murmúrios com Vinho de Missa situa-se ainda num campo próximo deste, com a narradora Lucília alternando o relato da sua experiência de docente na Universidade de Tulane com a escrita de um romance sobre a experiência do Padre Raul, seu conterrâneo «refugiado» nos Estados Unidos para escapar à chantagem de que é vítima por parte de José Carlos, com quem mantivera uma relação amorosa. Também aqui se verifica o procedimento da escrita dentro da escrita ou do romance dentro do romance, num encenação dos procedimentos criativos, a que, inclusive, as notas de rodapé adiantam, em tom irónico, as disponibilidades do autor, os seus caprichos e as consequências deles sobre o produto que, em último lugar, o leitor acaba por ter à sua frente.
E deve deixar-se ainda uma palavra sobre a construção de Burra Preta com uma Lágrima, uma fábula insular do século XX que na sua configuração semântica e narrativa recupera parcialmente as leis do género, embora fazendo-a divergir para o universo religioso pela sequência das epígrafes que abrem cada capítulo: provenientes do Apocalipse, elas transpõem as visões do evangelista João para um contexto de prodígios laicos temporalmente localizados perto de nós (o 25 de abril de 1974 e as sequelas do golpe militar passam pelo romance sob variados registos). Se este romance é também uma forma de homenagear o poeta da Vila de S. Roque do Pico (uma projecção ficcional de Almeida Firmino), a dimensão burlesca do acontecimento final que motiva o abate de Burra Preta (isto é, um coice desferido em parte sensível de um orador político), acontecimento ocorrido já em território terceirense, é ainda uma homenagem a Nemésio e eco literário do seu conto «A Burra do Lexandrino», uma e outra desaforadas e com muito pouco sentido das conveniências e do decoro.
Marta de Jesus (a verdadeira) é um romance que se constitui sobre um pré-texto literário, neste caso a narrativa bíblica do Novo Testamento e a partir de um núcleo que o título deixa exposto ao olhar e à compreensão do leitor. A epígrafe extraída do evangelho de Lucas assinala o comportamento e o perfil antitéticos das irmãs de Lázaro, Maria e Marta, centrando nesta uma capacidade de acção e uma inquietação que serão desconhecidas da primeira delas; o dinamismo e o protagonismo de Marta relega a irmã para uma zona de penumbra e de alheamento no interior da narrativa e é, desde logo, uma valorização da acção em detrimento da contemplação, em divergência com o sentido originário. Transpondo para o universo desta Marta o núcleo duro de seguidores do Emanuel bíblico (a mãe Maria Nazaré, Maria Madalena, o grupo dos discípulos), recontextualizando-os temporalmente a partir de meados do século XX (mas prolongando-os até à década de 90) e situando-os no espaço mais ocidental da Europa, a ilha das Flores, Álamo Oliveira constrói um romance cuja leitura obriga a um vaivém recorrente entre o explícito, contemporâneo, do primeiro plano e o implícito, remoto, do segundo plano, isto é, o subtexto evangélico, desafiando o leitor e jogando com as expectativas decorrentes do seu maior ou menor conhecimento bíblico. Essa dupla dimensão é atestada desde logo pelo enunciado inicial de cada capítulo, «naquele tempo», colhido directamente nos evangelhos, e que de forma óbvia contrasta com os signos da contemporaneidade presentes na abertura do romance: «Naquele tempo, Marta de Jesus pressentiu a morte como quem sabe o prazo de entrega de uma encomenda por correio expresso: chega no dia exato e é entregue à porta.» (p. 11).
O leitor terá, pois, ocasião de atestar a convocação de episódios bíblicos no interior deste romance, de verificar em que medida ela se realiza enquanto repetição e diferença, como é próprio de procedimentos narrativos e textuais do género, e como essas diferenças podem constituir, finalmente, um factor de frustração das expectativas do mesmo leitor . Na realidade, transpondo para a segunda metade do século XX açoriano e português, alguns episódios bíblicos, entre eles o projecto messiânico de salvação política do país, o autor condena-os desde logo ao fracasso: porque esta não é uma narrativa tocada pela visão e pela perspetiva do milagre (embora a dimensão religiosa perpasse o universo e a vivência das personagens) e porque a verdade histórica se opõe uma libertação situada nesse período de tempo (faltavam ainda 20 anos para que isso ocorresse, e não por via de qualquer «missão» salvífica, mas pela força das armas).
O mundo configurado em Marta de Jesus (a verdadeira) é fundamentalmente o das Flores, um mundo rural em queda, social, económica, sem sinais de redenção à vista, e a utop
ia de transformação do país a partir desse espaço remoto e graças à acção de um pequeno grupo como o de Emanuel Salvador e seus seguidores, essa utopia, dizia eu, não passa disso mesmo e acabará por tropeçar nas contingências do próprio tempo, sem que tenha qualquer efeito prático o papel de mentor ideológico desempenhado a partir de Lisboa por Pedro (o intelectual saído das Flores tempos antes). A pretendida viagem de libertação rumo à capital é atalhada por intervenção brutal de um tribunal de excepção (tribunal plenário?) constituído à pressa na cidade da Horta para julgar os rebeldes; e, mesmo que chegue a desembarcar em Lisboa, o grupo já estará decapitado do seu líder, Pedro terá desaparecido misteriosamente durante o julgamento e Judas já terá cortado os pulsos na Horta, à vista da ilha do Pico (o que sempre é uma forma de suavizar o remorso de ter vendido o Mestre por 30 contos).
«Naquele tempo, não havia epílogos», escreve o autor (p.181). E se é verdade que, após a tentativa de intervenção na política portuguesa (uma espécie de golpe das Caldas com origem na placa americana), «a ilha das Flores nunca mais fora a mesma» (p.78), ganhara visibilidade mediática (diríamos hoje), também é verdade que continuou a ressaca emigratória, Marta viu a ilha esvaziar-se em direcção a Oeste, obviamente, como sempre; e nem mesmo as transformações decorrentes do golpe de abril de 74 e a instituição de um governo regional foram capazes de colocar as esperanças da ilha ao mesmo nível das suas expectativas.
Aos poucos, «o grupo dos anos 60» (expressão colhida no romance) foi-se desfazendo, em boa parte pelas américas de maior ou menor abundância. Dos outros, Pedro, libertado do Tarrafal em 74 para onde, afinal, fora atirado, morre desencantado com a política; a morte de Marta desencadeia uma série de fenómenos cósmicos que anunciam o fim das coisas. Emanuel morre tranquilamente por obedecer de forma excessiva a uma ordem de João, o discípulo amado, que apenas o mandara dormir ; o próprio João acabará internado na Casa de Saúde de São Rafael, já depois de o governo regional ter mudado de partido.
Naquilo que este romance permite de uma leitura que suscita um segundo plano de significação para lá do imediatamente descodificável, Marta de Jesus (a verdadeira) é uma parábola geral sobre um tempo açoriano cujos limites iniciais ficaram devidamente assinalados, sobre alguns dos seus intervenientes mais dinâmicos e que ousaram sonhar outra coisa para o destino insular; uma parábola também sobre o insucesso desses projectos e sonhos, dos bloqueios institucionais que se lhes antepuseram, baseados na suspeição que, sendo a de um momento determinado, é por extensão e norma o timbre dos que nos olham a partir da beira-Tejo. Se Marta de Jesus (a verdadeira) constitui, por outro lado, uma espécie de balanço do grupo e dos Açores dos anos 60, lidos à luz de hoje, então é um balanço cujo teor deceptivo e desencantado a ironia do discurso envolve num discreto manto de melancolia. Restam os livros e os autores, e o romance é também uma homenagem aos escritores florentinos, mas os livros são ainda, e em certa medida, vistos como um perigo e uma ameaça à tranquilidade individual, coisas a devolver à procedência institucional e particular.
Na semana em que se comemoram os 40 anos de abril de 74 e na data em que se celebra o Dia Mundial do Livro, o romance de Álamo Oliveira encontra aí razões acrescidas para ser lido e discutido.
Urbano Bettencourt
Ponta Delgada, 23 de Abril de 2014
Nota: Em razão de um problema técnico de acesso ao Blog,via Ipad, durante o período que estive em Portugal e outros sítios europeus, também, da minha total falta de conhecimento de informática para solucioná-lo, não foi possível publicar o texto acima na data de sua apresentação, por Urbano Bettencourt, durante a sessão de lançamento do Livro em Ponta Delgada.
Agradeço a sua compreensão,
Lélia Pereira Nunes
em 23 de maio de 201