Marta gosta de pássaros
Eduardo Bettencourt Pinto
Um velho Buick estacionado na garagem aberta. No capô poisa um pássaro. Segundos depois juntam-se-lhe outros. Um murmúrio ou uma sombra afugenta-os. Desaparecem em revoada.
Marta gosta de pássaros. No jardim da frente tem um bebedouro e comida numa caixa de madeira suspensa de um ramo. Senta-se à porta e observa-os, embevecida e curiosa. De repente olha para cima em direcção à árvore, alta e frondosa, da rua. Uma águia!
Pega nos binóculos que tem no colo e aponta. Três corvos entretanto aproximam-se. A águia, impassível, ignora-os.
Pontos negros no céu, os corvos. Três assédios circulando a árvore. Um espectáculo aéreo de controlo territorial.
Um bluejay poisa no bebedouro. Marta não se apercebe, os binóculos em riste, atenta ao movimento dos corvos.
Marta podia ser uma personagem trágica de Camilo Castelo Branco. Ou, quem sabe, uma mulher de pele transparente, faces lívidas e cabeleira negra e encaracolada como essas figuras sem definição, crioulas e mágicas de Gabriel Garcia Marquez.
A águia, entediada, vai-se embora. Os corvos acalmam-se e assenhoram-se da árvore. Marta baixa os binóculos e deixa-os no colo. Um foco de luz ténue corre os seus cabelos grisalhos. Fica muito quieta, sentada numa cadeira de plástico.
Uma nuvem branca no céu. Os passos de um cão na rua, adiante do dono. É um homem sem rosto e com o perfil de uma sombra.
Janeiro é um mês branco, silencioso. As árvores dormem de pé, raquíticas, sob um cobertor frio de neblina. Marta gosta deste deserto sazonal, da sua quietude, da transparência das lágrimas de gelo que parecem punhais líricos prestes a caírem no chão.
Marta parece adormecida como a terra. Tem algo de plátano na sua figura cheia, talvez a solidão. Sentada na sua cadeira de plástico, olha o infinito, muito agasalhada, um cachecol de lã enrolado no pescoço.
Um tilintar de chaves. Marta não vira a cabeça. Sabe que é Eunice, a vizinha. A bruxa!, pensa. Deve ir ver o amante.
O carro daí a pouco afasta-se e a tensão desaparece do rosto de Marta.
Não gostam uma da outra. Há uma parede que as divide, noites, dias e rancores. «Quem não gosta de pássaros não gosta de Deus», respondeu Marta a Eunice meses, anos, séculos atrás. Essa espécie de ódio é uma eternidade. Quem pode guardar tanto no coração? Que modo mais triste de ser-se efémero.
Marta tem um segredo: o seu afecto pelos pássaros é uma espécie de credo. Encontra neles a graça e o júbilo dos anjos, a abstracção do Universo. Mas com quem partilhar essa convicção?
Ela e o seu velho Buick com pássaros numa manhã de Inverno, a águia que se vai embora, os corvos metediços. A neblina rasteira que, lenta, avança.
Marta é a idade do poema, dos seus rios. Um quadro de Matisse esquecido na memória do mundo.
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Sobre o autor Eduardo Bettencourt Pinto. Ficcionista e poeta. Angolano. Vive em Vancouver,Canadá. E de lá produz uma escrita belíssima, cheia de cromacia,movimento,ritmo. Lírica e onírica no domínio da palavra e seus multiplus significados que falam à alma. Uma produção literária vigorosa representada por inúmeros livros,presença em antologias, revistas digitais (como a Seixo Review que criou,dirigiu por um longo tempo) e inúmeros colóquios e congressos literários.