Memórias de hortênsias e jasmim
Maria abriu a custo a porta e entrou sorridente. Finalmente chegara Janeiro, trazendo no regaço o cheiro doce e harmonioso dos jasmins. O tempo melhorara, embora nunca se estivesse livre dum temporal e de um súbito arrefecimento, pois o clima era recheado das mais inesperadas surpresas, o mesmo sucedia, sempre ouvira dizer, com o da sua ilha natal, localizada nos Açores, semeada no oceano Atlântico. Partira de S. Miguel, no regaço de sua mãe, com apenas quatro anos e regressara lá duas ou três vezes, para reviver o azul do mar, o verde ímpar das encostas e a beleza perfumada das hortênsias.
Arrastada pelas malhas que a diáspora tece, viveu nos Estados Unidos até ao final da adolescência, para depois rumar a sul com a família e se fixar em Montevideu.
Gostava de passar o primeiro mês do ano naquela casa, perto da tranquila La Paloma, onde os filhos haviam passado infâncias felizes, antes de o fantasma da ditadura militar lhe ter desmembrado a família.
Aquele era o seu reino de memórias onde se julgava capaz de reviver o passado e segurá-lo entre os dedos, antes de se esvair como a areia duma ampulheta. Era o lugar para onde confluíam todos os sentidos da sua vida, que por vezes chegava a achar sem sentido…
Apesar de já se ter reformado (era professora de Literatura), acabava por passar quase todo o ano em Montevideu e só em Janeiro, quando a cidade «encerrava» para férias, decidia deixar para trás as angústias que a idade e a vida lhe iam servindo, para passar algumas semanas consigo própria, longe de tudo e de todos.
Primeiro, haviam saído os filhos de casa e do país, depois o marido partira para sempre, para a definitiva e eterna morada.
Era no seu apartamento solitário em Pocitos, com vista para a Rambla, que passava a esmagadora maioria do seu tempo.
Um dos seus prazeres favoritos – e dos poucos que a proximidade dos setenta anos não lhe havia roubado – era o de fazer longas caminhadas junto ao rio da Prata.
Evitava sempre que possível a vida sedentária, fazia questão de se manter activa, enquanto as forças lho permitissem. Tinha horror às consequências da velhice. A ideia da decadência e o fantasma da dependência mergulhavam-na num verdadeiro abismo sempre que se lhe assomavam ao espírito.
Aproximou-se da mesa e limpou a fotografia empoeirada: havia sido tirada aos dois filhos no último Verão em que a família estivera toda reunida. Que alegre havia sido essa estação! Depois abateu-se sobre eles o fantasma da ditadura, quando corria o ano de 1973. Os filhos eram jovens dinâmicos, com um imenso poder de iniciativa e com uma ânsia tremenda (típica dos vinte anos) de transformar o mundo, o país. Por isso, só tinham encontrado uma forma de escapar à hedionda teia que começara por envolver a vizinha Argentina e cruzara poucos meses depois o Rio da Prata. O exílio era a única forma de salvação, de sobrevivência. Ambos partiram.
Os meses que haviam sucedido à partida deles tinham sido verdadeiramente infernais. Todas as semanas, Maria tinha de ir prestar declarações aos militares. Passava horas a ser interrogada acerca do paradeiro e das actividades dos filhos. Perdia imenso peso, pois não conseguia comer nada nos dias que antecediam os interrogatórios.
Nesse tempo atroz, passava horas num cubículo, onde cheirava a morte e a dor. Umas vezes em pé, outras sentada num banco de madeira, esforçava-se por encontrar uma serenidade que não possuía, enquanto três militares, como abutres em redor da presa, a bombardeavam com perguntas. Temera sempre que alguma resposta duvidosa a arrastasse para alguma implacável sessão de tortura.
Felizmente, as preces que fazia mentalmente enquanto respondia sempre foram atendidas e nunca conheceu a tortura física. Porém, saía de lá vazia e esgotada. Conseguia controlar as lágrimas até ao momento em que chegava a casa e se trancava no quarto. Aí vertia toda a sua dor, em lágrimas amargas, sobre a almofada branca. Depois, aliviada, passava o resto do dia imóvel, com a alma paralisada, contemplando o tecto. Mais tarde, quase ao anoitecer, o marido chegava, corria a abraçá-la, contava-lhe em segredo que mais um amigo desaparecera…
Percorreu calmamente as várias divisões da casa, até que chegou ao jardim. Reparou que os arbustos cresciam e começavam a engolir o pequeno pátio. Precisava de contratar alguém que os cortasse e fizesse uma limpeza profunda àquele espaço.
Saiu de casa e percorreu apressadamente os dois quilómetros que separavam a casa de La Paloma. Perto dum caixote do lixo encontrou um homem que «hurgava», ou seja, procurava vidro, cartão, embalagens, ou outros objectos de interesse que pudesse transportar na sua carroça para vender. Aproximou-se dele e iniciou a conversa.
– Olá, bom dia. Se estiver interessado posso dar-lhe dois dias de trabalho.
O homem fitou-a com os seus olhos azuis, muitos límpidos, como se fossem feitos dum pedaço do céu. Apesar do seu aspecto descuidado e miserável, via-se que guardava uma beleza oculta.
– Claro que aceito, será um prazer e preciso bastante de ganhar alguns pesos1 para o meu sustento e o da minha mãe que tem uma reforma muito baixa.
Maria indicou-lhe o caminho para a casa, acertou a hora para o dia seguinte e o preço a pagar.
Quando a manhã seguinte acordou, já Maria vagueava pela casa, inquieta. Havia despertado cedo, pois o sono tinha sido povoado de pesadelos.
José Artigas (assim se chamava o homem) chegou pontualmente e principiou a trabalhar com afinco. Tinha o mesmo nome que o herói nacional, embora a sua vida até ao momento não tivesse nada de heróico.
Já experimentara várias profissões, vivera em outros lugares, embora próximos dali.
Tentara a vida como pescador em Punta del Diablo e em Cabo Polónio. No primeiro lugar, não ganhava quase para pagar a renda da exígua habitação pré-fabricada onde vivia.
Por isso, de regresso a La Paloma, a sua terra, ia procurando o sustento do dia-a-dia, nas mais variadas tarefas que lhe fossem aparecendo – a verdade é que nos tempos que corriam, o acto de sobreviver era, sem sombra de dúvidas, algo deveras heróico.
Maria contemplou por instantes o modo como aquele homem musculado, de
cabelo louro já esbranquiçado, de mãos brancas, magras e lânguidas como garças. Sentiu uma pontada estranha no peito. Por mais que quisesse, não conseguia desviar o olhar. Parecia petrificada, hipnotizada pelos movimentos incessantes dele. Que idade teria? Devia ter pouco mais de cinquenta…- pensava consigo própria.
– Minha senhora, já terminei o trabalho. Vou almoçar e volto mais tarde. – informou, limpando as mãos num velho pano.
– Mas se quiser, pode almoçar cá… – convidou timidamente, sentindo-se uma
adolescente desajeitada.
Ele acabou por aceitar, admirado. Não estava habituado a almoçar com os
patrões. Via-os sempre como uns seres à parte, situados a um nível superior. Além do mais, uma senhora com ar tão distinto e elegante…
José acendeu o assador e fizeram uma deliciosa «parrillada» (carne de vaca
grelhada nas brasas). Conversaram durante toda a refeição, como se fossem velhos amigos reencontrados após longa ausência. Era como se se conhecessem desde sempre, ou se houvessem partilhado uma vida anterior. Ele falou do seu dia-a-dia, da constante busca de trabalho, que se tornava cada vez mais difícil. Ela falou no marido falecido, no exílio dos filhos, nos horrores passados da ditadura… Ele tinha vivido um casamento infeliz que havia durado poucos anos. Agora morava com a mãe, já com noventa anos e a necessitar de muitos cuidados.
Por fim, terminaram e ele despediu-se dizendo que voltaria na manhã seguinte
para concluir a tarefa.
Maria ficou sozinha no jardim, colhendo jasmins. Aquele maravilhoso odor
tinha o dom de a transportar à juventude. Fora o perfume adocicado dos momentos mágicos da sua vida: os aniversários, o natal, o primeiro amor, o casamento, o nascimento do primeiro filho… E ago
ra, novamente aquele aroma
místico a acalentar-lhe a alma. Estaria a redescobrir um renovado e diferente tipo de amor? Enfim, não lhe importava. Apenas queria sentir intensamente aquela sensação cálida e doce que lhe embalava a alma sem sobressaltos… afinal e por que não? Nunca seria tarde. O amor não conhecia limites, estava para além da idade, do tempo e da ameaçadora velhice: bastava desenterrá-lo do reino das memórias e fazê-lo renascer sob a forma dum esplêndido e alvo jasmim perfumado tão belo como as hortênsias do seu “paraíso” perdido.
Dora Nunes Gago in Contos do Rio da Prata (inédito)
Dora Nunes Gago é professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento da FCT, na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações em Congressos Internacionais em Portugal e no estrangeiro.
Imagem: http://www.abccollection.se/images/products/kuddar/broderi_hortensia_blue.jpg