Um encontro singular entre dois cânones da literatura catarinense, Sérgio da Costa Ramos e Flávio José Cardozo, só poderia resultar no afinadíssimo dueto e no encontro de Duas Violas Arteiras para uma serenata de gala em homenagem a Florianópolis, à Ilha e sua gente.
Um conjunto de crônicas, que reunidas e partilhadas representam o melhor da nossa prosa. Cada autor, no exercício de estilos, derrama sua alma e se entrega por inteiro a clarificar mundividências e fortalecer a identidade cultural de Florianópolis e da Ilha de Santa Catarina. Um retrato sócio-cultural traçado com inteligência, bom humor ou humor desconcertante.
Une-as o mesmo diapasão que dá o tom da sensibilidade e, de quebra, deixa fluir a paródia, a ironia, a picardia na escrita criativa e atenta sobre o cotidiano de Florianópolis e da sua Ilha amada. Crônicas, que sintonizam o dia-a-dia de quem vive na miríade das mudanças sofridas nos seus mundos ou nos diversos universalismos que abraçam a sua criação.
A inspiração e o balaio de palavras que levam às costas expressam valores, atitudes, comportamentos arraigados que persistem e resistem ao tempo e às ventanias ou brisas do destino. Ventos imprevisíveis que sopram de todas as latitudes transformando o seu mundo de referência: a Ilha. Aliás, todo ilhéu tem um caso com o vento. O nosso é com o Vento Sul.
Sergio da Costa Ramos é um ilhéu, nascido em Florianópolis, atento ao seu universo e ao mundo circundante, um observador reflexivo do tecido social, em constante diálogo com memórias suas e de sua gente. Pequenos episódios, fatos pitorescos, anedotas, vivências, experiências, sabedoria temperada com maresia. Crônicas deliciosas que mexem com o imaginário e com a nossa memória. Principalmente uma memória que com frequência se intromete na vida corrente trazendo um pedaço da nossa existência de um jeito muito terno e querido, mesmo que lembrado e narrado com a irreverência típica do ilhéu, como as impagáveis crônicas; Inhapa e venda avulsa, Freguês de caderno, Outrora agora, Molecagens vernáculas, Floripa que era.
Sérgio é um virtuoso da palavra, refinado no jeito de tratar a língua portuguesa. Esbanja cromatismo e luminosidade sobre a cidade-ilha ao cantar suas belezas, a embriaguez da luxuriante verde paisagem, a alva da areia das praias, o arrostar das ondas rendadas de espuma, o azul-profundo do mar e os dias dourados de sol, magnífico. Impossível não se apaixonar por suas crônicas! Uma pena que navega livre por sua Florianópolis, pela Ilha, por outros mares seja por este Brasil, seja por outras margens, no além-mar. Sem dúvida, uma palavra escrita com aroma e sabor! Uma prosa que encanta exatamente pela descoberta, pela magia do encontro, do desvendar, pelo gosto de provocar, de atiçar, de mexer com o imaginário, de revelar um passado que ainda é presente. The past is never dead. It`s not even past, escreveu William Faulkner.
foto:Daniel Conzi/Diário Catarinense
Se o mar circula nas veias de Sergio da Costa Ramos, em Flávio José Cardozo o sal e a maresia impregnam a pele deste ilhéu-adotivo que veio das minas de carvão de Lauro Müller, onde nasceu ao pé da Serra do Rio do Rastro. Fez os caminhos de ferro, acompanhou as voltas do Rio Tubarão e chegou ao litoral. Conheceu o mar e ficou cativo para sempre. Boa parte do que escreve tem por inspiração as coisas, a gente à beira-mar, a faina da pesca, o mar cavado, o bailar das ondas, os dias esticados e tardes compridas, o canto das marés em noite de Lua Cheia. Revela com perspicácia a transformação do universo dos pescadores e praieiros, os conflitos e a resistência às mudanças que acompanham o inexorável processo de urbanização.
Crônicas que falam de histórias de vida, simples, contadas com humor e grande sensibilidade acontecidas no cenário do cotidiano da Ilha e de Florianópolis, narrativas de episódios que poderiam passar despercebidas mas que ele realça em sua prosa, no jeito sábio de olhar o ser humano sobre e em qualquer circunstância.
Rica em elaboração e conteúdo, a obra de Flávio José Cardozo é sensível à memória social de Florianópolis. Flávio faz o instante, alonga o fato, movimenta e encanta com o seu talento de bolinar as palavras. Nesse gênero, transcende o espaço local para explorar todos os temas. Capta imagens, pincela com ironia e colore o cotidiano por vezes amargo, extraindo dele o seu universalismo. A comunicação emana leve e solta, numa linguagem cheia de sutileza e malícia, tão própria do espírito manezês que seduzem o leitor.
Comentários e reflexões de absoluta frontalidade de quem não perde a ocasião de registrar a memória do lugar em que vive. Seus personagens passeiam com naturalidade e espontaneidade em suas histórias, como as crônicas entoadas por sua viola arteira O mágico, Mudança, Na praia do Pinho. Ontem à tardinha,Moça com gaiola ou Piiiiicolé!.
Foi com essa capacidade de domínio verbal, de tecer filigranas e perceber as sutilezas do tempo e espaço, que o escritor Flavio José Cardozo manteve durante anos, diariamente, uma coluna de crônicas (e de muitos pequenos contos) no jornal Diário Catarinense, da mesma forma que o jornalista e escritor Sérgio da Costa Ramos assina sua coluna de crônica no mesmo jornal com saídas diárias. Um espaço que não só muito contribuiu para a difusão da sua produção literária como também tem sido palco para que cada um se posicione como viva voz na defesa das questões culturais, das tradições ilhoas, de tudo que significa e representa para Florianópolis e a Ilha de Santa Catarina.
Com as crônicas de Sergio da Costa Ramos e Flávio José Cardozo entendemos que Ilha é muito mais que um espaço geográfico, uma porção de terra cercada de água por todos os lados. No seu gosto de bailar com as palavras e de dizê-las por inteiro em seus múltiplos significados aprendemos que das janelas da Ilha, abertas para o mundo, se descortina o infinito, que a ponte Hercílio Luz, o cordão umbilical que nos une ao continente, é símbolo vivo, fetiche, é passagem e magia da ilha e da terra firme. E o ilhéu? É este ser alegre, apaixonado pelo seu chão,gente boa que carrega a Ilha dentro de si, nas suas entranhas, que deixa transparecer no olhar a comunhão telúrica com o mar e traz na pele o sabor do sal.
Os menestréis da crônica são os moleques da prosa cercados de inspiração por todos os lados, como sabiamente definiu o cartunista e cronista Dante Mendonça.
De inhapa vai o livro Duas Violas Arteiras, da Bernúncia Editora em parceria com a Academia Catarinense de Letras, neste maio outonal de céu azul límpido,como só os dias de maio sabem ser.
Crédito das Imagens Capa do Livro:Vinicius Alves, acervo Ed.Bernúncia;
Foto Escritores:Daniel Conzi,especial DC.2009