37. RETRATOS DE FAMÍLIA
j) Flannery O’Connor
Ela poderia ser uma personagem de si própria: menina rica da Geórgia, o mítico sul da América esclavagista; filha única e solteirona, que morre de lúpus aos trinta e nove anos, não sem antes se consagrar como a maior escritora dos States do séc. XX.
Há nela uma mistura cativante entre a herdeira provinciana com paixão por pavões e a inteligência cáustica de quem põe as pretensões citadinas no seu devido lugar. Imaginemo-la a dizer as suas graças, cheias de ironia fina, com sotaque.
E católica num país protestante – e não apenas católica mas empenhadamente católica no seu ofício, a ler muita teologia para se preparar para as suas histórias, a escrever para jornais de paróquia durante anos – e, sobretudo, a fazer das melhores palestras que há para ler sobre o ser escritor e crente, ao mesmo tempo.
Não se podem perder estes pequenos ensaios duma agudeza cirúrgica de filósofo analítico. Os americanos têm esta qualidade que rareia na Europa: são muito confessionais, sem temerem perder o crédito, que não lhes é tirado por ninguém por causa disso.
Não estão traduzidos, mas alguns dos seus romances estão, assim como os contos. Flannery O’Connor é melhor no formato curto que valoriza a sua incisão estilística, as suas atmosferas de filme de suspense.
Quase todas as personagens são más, até perversas, sobressaindo aquelas que começam por surgir imunes ao pecado e que vimos a descobrir guardarem um defeito qualquer. E há vítimas inocentes da maldade diabólica, como em “Um Homem Bom é Difícil de Encontrar”.
Aliás, este é um traço comum entre muitos dos grandes escritores católicos. Porque é que isto acontece, apetece perguntar. Conhecem a natureza humana, não disfarçam a maldade, sabedores de que só a Graça nos leva ao Céu.
Quem não acredita tende a disfarçar as mil caretas do Inimigo com historietas de cárácácá. Ou então apresenta um mundo porco como uma tragédia inevitável, sem a fímbria da esperança, que um católico consciente tem a obrigação de deixar em aberto.
Muita literatura contemporânea é pornográfica, neste sentido: tranca a porta da esperança e obriga-nos a enojar-nos com o mergulho na decadência, como se não sobrasse outro destino ao ser humano.
Nos tais ensaios, Flannery O’Connor explica muito bem estes temas: um escritor católico não deve confundir o Reino de Deus com o mundo dos homens, procurando disfarçar piedosamente as manifestações do mal. Todavia, isto não quer dizer que se bata palmas às personagens descritas.
Ela é exímia neste equilíbrio de forças.