Mestres do Sagrado:
A tradição da Festa do Divino na área rural de
Santa Tereza/Figueirão-MSi
Santa Tereza é uma comunidade de área rural pertencente ao município de
Figueirão, localizado ao norte do Estado de Mato Grosso do Sul, cuja vegetação
predominante é o cerrado. É formada em sua grande maioria por pessoas da
numerosa família Malaquias, cujo fundador, Joaquim Malaquias, instalou-se no local
em 1901. Entre os moradores, existe um mapa construído pelo imaginário social, que
demarca o espaço físico e o simbólico indicando direções, lugares, atalhos, distâncias,
espécies vegetais e animais, riachos, perigos, etc. Para além de Santa Tereza as
referências concretas vão se dissipando até apagarem-se por completo. O espaço
urbano mais próximo e imediato é a cidade de Camapuã, distante dali a 90 km.
Depois o espaço torna-se bem afastado, como a Capital do Estado, Campo Grande (a
245 km), ou desconhecido, como a cidade de São Paulo. É uma comunidade que
viveu muito tempo calcada em princípios de solidariedade e reciprocidade, pela
relativo isolamento em que se manteve até o terceiro quartel do século XX. O
primeiro meio de comunicação, o rádio a pilha, só chegou em 1970; a energia foi
estendida até Santa Tereza no início do século XXI e poucas pessoas, até o momento,
têm aparelho de TV; a única torre de serviço móvel celular foi instalada no local em
2010. Portanto, estamos falando de uma comunidade ainda distante do modo de
vida capitalista, consumista.
A estrada arenosa que liga a cidade de Camapuã a Figueirão só foi asfaltada
em 2013, mesmo assim, ainda há vinte e oito quilômetros de estrada de chão para
chegar à fazenda onde se localiza a comunidade. Portanto, no período da pesquisa,
década de 1990, 245 km eram percorridos em puro areão, em que o carro comum
atolava, sendo necessária a espera por um caminhão que puxasse com grossas
cordas.
Apesar de todas as dificuldades, pode-se dizer que em Santa Tereza, um dos
canais privilegiados de comunicação e de transmissão de significados (em diversos
níveis), é a Festa do Divinoii. Sua tradição foi investigada em todo o seu ritual com o
propósito de explicitar a dimensão alcançada pela festa em âmbito cultural e
educativo, a partir de um enfoque fenomenológico. A religiosidade popular, como
parte da cultura popular em sua pluralidade, é mantida pelo esforço das
comemorações ritualizadas ciclicamente e aprendidas na vida cotidiana. É um espaço
simbólico de expressão da cultura popular – folclore-tradição, espaço com o qual o
povo dialoga para construir o seu mundo de relações familiares, de vizinhança, de
religiosidade, de escola e de trabalho. Portanto, trata-se de uma festa específica e de
um lugar singular, localizado no meio do cerrado que serviu, no início de seu
povoamento, de esconderijo a vários desertores do sul de Minas Gerais e de Goiás.
Serviu, também, de passagem da Coluna Prestes em meados da década de 1920,
travando embates com a família Malaquias.
A festa mantém, de forma articulada, rituais religiosos, conservados através
dos séculos, mas redefinidos pelas tradições populares locais, e atividades de
diversão, mas que se completam perfeitamente. O culto ao Divino é expresso por
ações coletivas, enquanto que os sistemas simbólicos de distribuição de bens e
serviços são fomentados pelos dirigentes da festa. A responsabilidade da realização e
sucesso da festa é do casal de festeiros, cabendo-lhes a obrigação de assegurar o
bom desenvolvimento dos ritos. Porém, a festa não possui a dimensão do luxo
estético dado, por exemplo, às mesmas festas desenvolvidas em grandes cidades
brasileiras. Pela análise das condições locais, geográficas, humanas e materiais da
época, a simplificação do ritual é fácil de ser entendida: a distância que os separava
dos centros urbanos era imensa e poucas pessoas habitavam o local, levando uma
vida rústica e pobre. Por isso, a festa é organizada em torno de: o casal de festeiros, o
mestre geral e oficiante das rezas e seus ajudantes, a rainha do altar, o mordomo do
mastro, o mordomo de fogueira e os foliões que formam um conjunto composto por
aproximadamente vinte pessoas: chefe da folia, alferes da bandeira, folião guia,
salveiro de tiros, campeiro da tropa, conjunto musical. Além desses principais
participantes, há os chamados “empregados” da festa como: cozinheiras e suas
ajudantes, carneadores das reses doadas para o evento, churrasqueiros, ajudantes de
campo.
Toda alimentação consumida durante o período festivo é doada e servida
gratuitamente. Quando a festa é boa, chega-se a abater até quinze reses para
atender o pessoal que trabalha e o público presente, tanto na saída da bandeira que
fará o giro, até sua chegada e comemorações. Os “empregados” da festa, são
entendidos como empregados do Senhor Divino, sorteados no ano anterior para
cumprirem seu papel no dia da festa, gratuitamente. Todos colocam seus nomes em
uma sacola para serem sorteados com as funções necessárias ao momento. Muitas
pessoas crêem que são instrumentos do Divino Espírito Santo ao trabalharem pela
festa, outras gostam de ajudar nos trabalhos por prazer e, outras ainda, participam
em função de promessas feitas anteriormente. Mesmo assim, a comissão da festa
tem gastos com serviços de trator e limpeza do pátio, carneadores e churrasqueiros,
complementação de alimentos, se os arrecadados não foram suficientes. Até a
chegada da energia elétrica, período da pesquisa, havia o gasto com óleo para
manter o motor gerador de energia ligado durante os vinte dias.
Ser festeiro implica trabalho e responsabilidades: contatar pessoas
convidando-as para a festa, fazer pedidos de doações, providenciar serviços e
materiais, comprometer-se financeiramente com os gastos, quando no final, poderá
ou não ser ressarcido, dependendo da arrecadação do leilão. Porém, ser festeiro, é
ser uma realização de prestígio.
Os objetos simbólicos mais fortes, nas formas de materialidade da crença, são
as bandeiras e o mastro, seguidas das fitas que os foliões levam na camisa, no chapéu
e nos instrumentos musicais. Os objetos semânticos, em torno dos quais se
organizam os discursos são os cânticos. Outros objetos estão carregados de
simbologia, como as velas acesas no levantamento do mastro, os fogos estourados
durante as rezas, a comida servida aos foliões, mediante o bendito.
Ao chefe geral cabe oficiar, no local da festa, os ritos principais. É o que detém
conhecimento sobre as rezas, ladainhas, sequências, ritos de pagas de promessas,
enfim as práticas ritualísticas. Mostra-se um líder diante da família e da comunidade.
Este é um cargo vitalício ocupado pelos descendentes de Joaquim Malaquias,
preservando a memória cultural e ensinando às novas gerações, por meio de sua
experiência. Tanto o chefe geral, como o chefe dos foliões, além de representarem
coletivamente a memória da comunidade, assumem funções marcadamente
educativas ao conduzirem os foliões e ao incentivarem a integração dos
participantes, a coesão social do grupo, segundo seus padrões.
Os foliões do grupo musical tocam instrumentos como sanfona, violas, violõese diversas percussões: pandeiros, caixas, rabecas, triângulos. Também formam o
coral do grupo, destacando as primeiras vozes, as segundas e o coro geral. Todos
vestem camisa vermelha de mangas curtas ou compridas, conforme a temperatura;
no bolso a insígnia do Senhor Divino – a pomba branca de asas abertas. A calça é
simples, comum e de cores variadas. Os pés calçam botinas, muito usadas na região
pelos moradores da zona rural, denominadas de botinas de peão. A folia faz o giro da
bandeira a cavalo, durante quinze dias, percorrendo as fazendas do entorno, num
espaço aproximado de 200 km em linha de circunferência, desde que o sol nasce até
antes dele se pôr. Durante o tempo do giro, os foliões levam seus pertences como:
mudas de roupas, rede de dormir, capa de chuva gigante que cubra o cavalo e
apetrechos de viajante. Nenhum bicho é sacrificado, nem mesmo cobras, tudo é
respeitado, nem sexo é permitido. É um período de recolhimento espiritual e muita
oração em cada casa que a bandeira passa.
Observando as saídas e chegadas da folia às casas, nota-se que os fogos
anunciam que esta chegou à casa de fulano ou beltrano, que está nos momentos de
picos dos rituais e que os foliões se regozijam ao saírem das casas para continuarem a
jornada. Conforme uma entrevistada, “… a gente sabe onde eles estão, se é na
fazenda de um ou de outro, pelos fogos.” Em cada casa, os foliões cantam e os versos
são criados e improvisados à maneira de trovas – composição lírica de cunho popular,
comum na Idade Média, também chamada de quadra popular. Consiste em dois
versos anunciando e os outros dois respondendo, como se fosse um desafio. O
sensível e o estético são trabalhados no conjunto harmonioso do ritual, no qual a
música tocada e cantada elabora o discurso não verbal da melodia e verbal dos
versos. Estes descrevem tanto as ações quanto as intenções que os acompanham no
ritual sagrado, legitimando, portanto, a sacralidade da ação. Significa dizer que esse
momento se traduz no estabelecimento de diálogo com o santo, Senhor Divino.
No dia da festa, alguns cargos concentram maior poder de decisões e outros
têm participação de caráter mais simbólico nos rituais ou em cargos mais simples. No
entrelaçamento dessas participações acompanha o caráter pedagógico da festa, pois
para cada tipo de atuação exigem-se determinados conhecimentos, que devem ser
repassados para os iniciantes, inclusive para não perderem os fundamentos
essenciais que fomentam a tradição da comunidade. Quem não participa com
serviço, marca sua presença com doações materiais, podendo ser de pó de café,
arroz, galinha e até gado para churrasco e leilão. As doações são separadas, durante
o ano, simbolizando sacrifício a ser oferecido ao Senhor Divino e obter, em troca,
cura de doenças, eliminação de disputas, rivalidades, restabelecer a ordem cósmica e
a ordem social.
A festa, realizada na minúscula capela da zona rural, consegue reunir de duas a
três mil pessoas nas comemorações de Pentecostes, cinqüenta dias após a Páscoa,
sábado do Senhor Divino Espírito Santo. Gentes vindas de vários lugares como de:
Campo Grande, Camapuã, Coxim de MS e até de Cuibá-MT chegam no sábado de
manhã, para apreciarem a chegada dos foliões no período da tarde, acompanharem
as rezas de pagas de promessa, participarem do “bendito” e do jantar coletivo, do
terço cantado, do levantamento do mastro e do acendimento da fogueira. Depois
participam da festa profana, com apresentações da dança catira, pelos foliões e do
baile abrilhantado por conjunto musical baileiro que segue até as sete horas da
manhã do dia seguinte. O baile é o auge da diversão. A dança é a ruptura do tecido
cotidiano, é a negação de uma vivência de sofrimento, construída sobre regras. É um
momento de libertação e de êxtase. Algumas vezes ele é interrompido para os leilões
aquecerem a economia da festa, o fazendeiro que doou uma rês, ele mesmo
arremata para ajudar a festa. Os participantes que preferem dormir armam suas
redes em qualquer lugar do pátio e têm um bom sono.
A festa do Divino na comunidade de Santa Tereza é, portanto, o lugar onde as
pessoas se expressam; o lugar que propicia contatos com agentes de fora
interessados em conhecê-la e divulgá-la; é um importante momento de comunicação,
no qual se podem conhecer as uniões de familiares e sancioná-las; saber sobre o
preço do gado, do leite e do milho; fazer arranjos e rearranjos para os laços de
compadrio e vizinhança; local de circulação de notícias veiculadas oralmente. A festa,
enfim, é o lugar onde a comunidade se encontra e se permite trocar, expressar,
restringir, rezar, amar, temer, aspirar, educar, produzindo cultura e integração social.
A crença católica mistura-se com o ritual religioso popular, tornando-se um grande
acontecimento na região, capaz de atrair pessoas de outras cidades, mesmo tendo
que enfrentar a falta de conforto na viagem e na acomodação.
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O presente artigo é síntese da pesquisa de Mestrado em Educação pela UFMS, com defesa em 1998, cujo conteúdo
resultou na publicação do livro Mestres do Sagrado, em 2014. Sua aquisição pode ser feita pelo email:
marleisigrist@gmail.com
ii Festas do Divino Espírito Santo acontecem em vários estados brasileiros. Sua origem, Moisés Espírito Santo, em Origens
orientais da religião popular portuguesa (1988:110) nos explica que é do culto à festa judaica de Pentecostes, que em
grego significa “cinqüenta”, são cinqüenta dias após a Páscoa (uma das festas bíblicas impostas pela Lei (Páscoa, Omer,
Pentecostes e Colheitas). Do culto agrário primitivo dos Cananeus, adotado pelos hebreus desde a conquista de Canaã,
recebendo a significação da “Renovação da Promessa”, que correspondia à “boa ordem nos campos e nas culturas”. Muito
tempo depois, na Idade Média, antes mesmo do Brasil ser descoberto, a Rainha Santa, de Alenquer instituiu o culto no
catolicismo, oferecendo banquetes coletivos para a população comemorar o evento. O costume se repete até o século XXI
em Portugal e no Brasil, por força de sua colonização portuguesa.
² A autora MARLEI SIGRIST é Mestre em Educação pela UFMS. Pertence a Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore.
É escritora. Membro da Academia Feminina Sul-Mato-Grossense de Letras.