Há algum tempo, e por motivo de que não me recordo, servi-me do Google para pesquisar na internet a expressão “escrevências desinventosas” que, como se sabe, é título de crónica de Mia Couto. A resposta veio em 53 segundos, com cinco registos. E num atento exercício de vigilância sobre os bons usos e costumes da língua, perguntava o Google, mesmo sem ponto de interrogação: “Será que quis dizer: escreventes desinventosas” e ainda “Será que pretendia pesquisar: escreventes desinventosas”.
Passo por cima do facto de, para mim, “escrevente” pertencer ao género masculino e, por isso, a sintaxe do prestável Google me causar alguns arrepios. E, pudesse eu falar com a máquina, ter-lhe-ia dito que “escrevências” era efectivamente o que eu procurava; e que quanto a “escrevente”, a palavra faz-me sempre pensar numa personagem de Eça de Queirós que se dedicava a “composições galantes e devotas” nas quais o advérbio “só” rimava com “pão-de-ló” — personagem que poderia muito bem ter servido para ilustrar um dos pólos da dicotomia que, há três décadas, o teórico francês estabeleceu entre escrevente e escritor, ou seja, entre o funcionário administrativo da língua, zeloso burocrata da norma, e aquele que a desfaz e refigura, para lhe dar um novo rosto em que possa de algum modo reconhecer o rosto dos homens e do seu tempo.
Curiosamente, o episódio da busca electrónica aproximava-se, afinal, da situação que há vinte anos mais ou menos justificou a referida crónica, que passo a citar:
“Estava já eu predispronto a escrever mais uma crónica quando recebo a ordem: não se pode inventar palavra. Não sou homem de argumento e, por isso, me deixei. Siga-se o código e o calendário das palavras, a gramatical e dicionárica língua. Mas ainda, a ordem era preguntosa: «já não há respeito pela língua-materna?»
Não é que eu tivesse intenção de inventar palavras. Até porque acho que palavra descobre-se, não se inventa. Mas a ordem me deixou desesfeliz. Primeiro: porquê meter a mãe no assunto. Por acaso sou filho de língua, eu? Se nasci, mesmo inicialmente, foi de duplo serviço genético, obra inteira. Segundo: sou um homem obeditoso aos mandos. Resumo-me: sou um obeditado. Quando escrevo olho a frase como se ela estivesse de balalaica, respeitosa. É uma escrita disciplinada: levanta-se para tomar a palavra, no início das orações. Maiusculiza-se deferente. E, em cada pausa, se ajoelha nas vírgulas. Nunca ponho três pontos que é para não pecar de insinuência. Escrita assim, penteada e engomada, nem sexo tem. Agora acusar-me de inventeiro, isso é que não. Porque sei muito bem o perigo da imagináutica. Às duas por triz basta uma simples letra para alterar tudo. Um pequeno «d» muda o esperto em desperto. Um simples «f» vira o útil em fútil. E outros tantíssimos, infindáveis exemplos.(…)”
A crónica, inicialmente publicada na imprensa e incluída mais tarde em Cronicando, logo antes de uma outra dedicada “aos puristas da língua”, é já uma réplica de Mia Couto às reacções (algumas das reacções) públicas de reprovação dos seus processos de escrita; réplica irónica, é certo, pelo facto de ir praticando a cada passo e em toda a extensão aquilo que diz recusar, em obediência às imposições dos vigilantes moçambicanos da língua portuguesa. Nos explícitos e implícitos do seu texto, “Escrevências desinventosas” pode ser lida como o sinal dos constrangimentos que, não raro, se levantam à criação literária e artística, mesmo em contextos revolucionários que, por norma e por paradoxal que pareça, costumam ser esteticamente conservadores; num jogo subtil em que oscilam, se cruzam e sobrepõem a voz do cronista e a dos seus críticos, criando uma ambiguidade que continua a escapar a alguns leitores, o texto de Mia Couto ironicamente denuncia a tentação de quantos pretendiam (eventualmente, pretendem ainda, em qualquer outra parte) tornar-se os controleiros da língua e da imaginação. E estes acabam por ser dois aspectos fundamentais na construção da sua obra e na aproximação que a ela se faça.
Tenha-se presente que Mia Couto se revela como autor num contexto pós-colonial em que o escritor inevitavelmente se questiona sobre o relacionamento a manter com a língua do colonizador: Recusá-la em absoluto? Adoptá-la, mas em que termos? Adaptá-la, transformando-a? Não é este o momento para nos determos nas diferentes soluções que, dentro e fora do contexto da língua portuguesa, as literaturas africanas têm adoptado; no caso de Mia Couto, a resposta está dada pelo autor numa entrevista já não recente, quando interrogado sobre a lusofonia:
“Lusofonia não, lusofonias. Cada um de nós tem a sua e tem que ser capaz de a inventar e de a alimentar a seu modo. Poderia dizer que a minha pátria é a poesia. E a língua portuguesa. Mas exactamente na sua capacidade de deixar de ser “portuguesa”. Isto é: a língua portuguesa enquanto espaço onde me reinvento, onde me torno único. Assim, encontro pátria na minha língua portuguesa” (Público, 03/01/ 2000).
(Continua)