O leitor atento facilmente detectará na obra de Mia Couto o modo como aí se exerce uma particular realização da língua portuguesa, num ritmo e num andamento que sobressaltam o olhar e o ouvido europeus, e onde é notória a influência da oralidade africana e a incapacidade da liberdade criativa para conter-se dentro das margens impostas pelo sistema português. É verdade que neste domínio o leitor talvez se sinta sobretudo rendido ao mais óbvio processo de inventiva (ou descoberta) verbal, concretizado no imenso repertório de neologismos a que estes vinte anos de escrita deram lugar. Construídas por processos usuais de formação de palavras (e por outros menos comuns, como a amálgama), mas por vezes em contextos inesperados e “inadequados” ao sistema linguístico (minimozito, inutensílio, ou inesquecer, por exemplo), as “brincriações vocabulares” de Mia Couto, como lhes chama Fernanda Cavacas, não podem, no entanto, ser vistas apenas como simples artifícios lúdicos: elas condensam e ao mesmo tempo expandem significações, ampliam redes semânticas, convocam outras palavras e sentidos distantes. Dentre os inúmeros exemplos possíveis, trago aqui apenas um colhido em Na Berma de Nenhuma Estrada: “os olhos dela, amendoídos ainda….”. O adjectivo facilmente reenvia ao termo parcialmente oculto, amendoados, mas ao formato dos olhos acrescenta um difuso sentimento dorido, simultaneamente físico e psicológico, de quem levara pancada do marido.
Esse gesto subvertor/reconstrutor da língua passa igualmente por outros processos, como sejam a transformação parodística de expressões idomáticas, provérbios, aforismos, veículos de um saber cristalizado e acomodado que, deste modo, se questiona em nome de uma outra verdade que o texto contrapõe, em sentido crítico por vezes (“pobre e mal emagrecido”); ou então, numa perspectiva diferente, é o texto que vai construindo a própria rede aforística e sentenciosa, com traços de uma sabedoria que parece vinda do fundo de um tempo imemorial.
Falar da linguagem de Mia Couto é ainda referir uma expressividade própria construída muito sobre a base da metaforização ou da animização e que é já a manifestação de uma particular visão do mundo. Vinte e Zinco (relato dos últimos dias da vida do pide Lourenço de Castro, entre 19 e 30 de Abril de 1974) é, antes de mais, um bom exemplo de como “basta uma simples letra para alterar tudo”: a troca de “cinco” por “zinco” produz um desvio de foco e perspectiva, do 25 de Abril português para a realidade moçambicana dos bairros pobres com a suas casas de telhado de zinco. E a narrativa começa com a seguinte frase: “Lourenço de Castro entra em casa, à mesma hora de sempre, essa hora em que a luz adoece, cansada de tanto dia.”
Se o fragmento descritivo nos surpreende e ao mesmo tempo seduz, será talvez porque esperaríamos encontrá-lo num contexto lírico (e vale a pena lembrar que Mia Couto se estreou em livro como poeta, exactamente), mas também porque esse fragmento traduz um certo modo de percepcionar o mundo de que já nos afastámos, moldados por um pensamento racional e lógico que tudo reduz a leis e a formulações abstractas, totalizantes e totalitárias. Ora, o que aqui se manifesta é outra coisa, a expressão de um olhar subjectivo que estabelece uma relação de intimidade com o mundo natural, situado num igual plano de vida anímica e de vivência humana; trata-se, em suma, de um mundo animado e vivo, próprio das mundividências mágicas rurais africanas, em que tudo é possível, e que o autor refigura, num projecto de escrita em que a realidade social, a história, a cultura moçambicanas sucessivamente se ficcionalizam, reelaboram e questionam.
Sob diferentes géneros literários e através de variadíssimas e surpreendentes construções efabulatórias, a narrativa de Mia Couto traça um quadro da recente história moçambicana, nas suas tensões coloniais, nos seus conflitos internos e no choque de vivências sociais e individuais: está lá a experiência da guerra e dos seus absurdos, o registo da questão racial (em sentidos opostos, até), a dualidade cidade-campo e os desajustamentos daí resultantes, o choque de culturas ou a continuada incapacidade europeia para entender África (O Último Voo do Flamingo), a emergência de um mundo novo em que os mais velhos já não se revêem e dele são excluídos, reduzida a sua nação a uma varanda (ou “ilha”), como reconhece a personagem de A Varanda do Frangipani; mas estão lá também os equívocos jogos do amor e do ódio, da traição e da ternura, e sobretudo a capacidade de sonhar e procurar uma identidade por sobre a ruína dos dias.
Uma identidade que se pretende aberta, como exemplarmente o atesta o diálogo transtextual que a narrativa de Mia Couto vem mantendo com outras escritas e culturas, contrabandeando entre África e a Europa (a expressão é do autor), subvertendo rituais (“O menino no sapatinho”), recontextualizando mitos tão antigos como o de Leda e o Cisne (“Os amores de Alminha”) ou o de Aracne (“A infinita fiadeira”), para referir apenas alguns exemplos colhidos entre os contos de Na berma de nenhuma estrada e O Fio das Missangas.
Assim, a obra de Mia Coutro, trazendo as marcas de um mundo que nos é distante, acaba por tornar-se tão próxima de nós: por tudo isso, é certo, e ainda pelo gesto de compreensão e de humanidade, de crítica e também de humor sereno que lança sobre os destemperos dos homens; sobre esses mundos de íntima melancolia, desencontros e solidão, mas também de alegria contida, estende-se o brilho novo de uma língua reinventada ou desanoitecida, para nos chegarmos ao registo do autor — motivo acrescido para a nossa cumplicidade de leitores.
Urbano Bettencourt
Ponta Delgada, 11/Maio/2006
Imagens:acervo do autor