O violino fascina-me. Olho-o ou escuto-o como se fosse um instrumento sagrado. Ou um instrumento do sagrado. Nomes lendários, como os dos construtores de Cremona ou de Nicolau Paganini, ajudaram a criar-lhe uma aura de mistério que o génio de Fritz Kreisler, Ginette Neveu ou Isaac Stern prolongaram até aos nossos dias. No entanto, para mim, qualquer um que saiba tocar violino, ainda que seja na versão popular e roufenha da rabeca, é um ser superior. Tanto mais que o braço tem aquele espelho sem trastes que nem dá para compensar um desvio de milímetro quando se pressiona a corda à procura do tom certo… Tenho a certeza de que, se me atrevesse a tentar ser violinista, só acertaria no sol, no ré, no lá e no mi. Os das cordas soltas, claro.
No Sábado, 25 de Junho, tive a oportunidade de gozar o sublime prazer de um violino tratado com muito amor e arte. Nas Capelas, que é um dos mais belos pedaços da ilha. E num dos mais lindos recantos da vila que também já foi baleeira. Foi aí que a Micaela fez a sua primeira apresentação pública, no auditório superlotado do Hotel do Vale do Navio. Conheço-a desde quando era do tamanho de um violino. E vi-a crescer no grupo de cantares Belaurora, inventado pelo pai, o velho amigo Carlos Sousa. Confesso a minha fraqueza – quando o arranjo obrigava ao protagonismo do violino, eu quase me abstraía do resto para pôr toda a atenção na magia daqueles sons. Porque a Micaela não precisou de crescer para dominar o entendimento entre as cerdas e as cordas.
Como foi o concerto?… Ora, como foi?… Como é que se explicam sons a quem não pôde ouvi-los?…
Micaela. Na composição da figura, a nota clássica do cabelo longo, caído sobre o ombro direito, em contraponto com o violino. A harmonia de um belo rosto juvenil, sustendo-se numa ligeira ansiedade, em compasso de espera enquanto o piano fazia a introdução. Depois começou a revelação do mistério. Uma peça bem escolhida para abertura de um concerto. Na sua graciosa simplicidade, o “Improviso sobre uma cantiga do povo”, de Cláudio Carneyro (1895 – 1963), prepara o artista para exercícios mais complexos, e os ouvintes para peças que requeiram mais atenção.
Seguiu-se o belo 1º andamento do Concerto nº 7 de Pierre Rode (1774 – 1830), que divide a responsabilidade pelo violino e o piano em partes iguais, apesar de o tema principal estar sobretudo a cargo daquele. E veio Bach e a vertiginosa sucessão de semicolcheias da “Partita nº 3”. Uma catadupa torrencial de notas que parece não deixar tempo para respirar. Ao compor esta, como a maior parte das suas obras, o génio de Eisenach fez um acto de fé no talento humano. Aqui o violino ficou entregue à sua sorte, sem poder contar com o piano para disfarçar alguma hesitação ou nota em falso. Nem teria sido necessário – a sorte do violino estava em excelentes mãos, que executaram primorosamente a Bourrée e a Gigue da “Partita”. Depois foi Mozart e o recurso a todas as capacidades das quatro cordas, incluindo um longo pizzicato – a Sonata nº 35 para violino e piano.
O programa, que foi o escolhido para o exame da Micaela do 8º grau do Conservatório, concluiu-se com a Mazurka Obertass nº 1, de Henryk Wieniawski (1835-1880), o Paganini polaco. É habitual a existência de peças especialmente difíceis escritas por intérpretes compositores, como no caso do “Moto Perpetuo”, de Paganini, ou dos “Estudos Transcendentais”, de Liszt. Esta Mazurka de Wieniawski corresponde à tradição, incluindo longas e rápidas arcadas e dedilhações de mão esquerda. E, por sua vez, a Micaela correspondeu ao desafio.
Mas o concerto só viria a acabar com “Quebra Queixo (Choro)”, do brasileiro Celso Machado (n. 1953). Neste extra de suave beleza a artista teve a acompanhá-la a irmã Anita, em guitarra clássica.
Um bravo para João Espírito Santo, pianista de grandes recursos e admirável currículo, que, na impossibilidade de dispor de um piano, teve a humildade de aceitar o desafio de tocar numa clavinova. Não é facilmente que os bons pianistas prescindem de um bom piano. Mas os bons artistas são capazes disso e de muito mais.
A Micaela é mais um talento dos vários que começaram a sua formação na Academia de Música da Ribeira Grande e a continuaram no Conservatório de Ponta Delgada. Aqui teve a sorte de ter como professora Shelley Ross, um dos nomes mais estimados da música que se faz ou que se aprende em São Miguel. No próximo ano, frequentará uma das três escolas superiores do Continente em que prestou exame tendo sido aprovada em todas. E, qualquer dia, ouve-se dizer por cá que actuou no CCB ou que partiu para uma aventura no estrangeiro. Esperemos ao menos que, antes, tenha sido convidada para um dos grandes palcos de São Miguel. A Micaela merece e os amantes da música também. Só nos fica bem quando reconhecemos o valor de quem o tem. E a isso estamos obrigados quando se trata de gente da nossa gente.
Maia, São Miguel, 28 de Junho de 2011
Daniel de Sá