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MIGUÉIS ENTRE DOIS EXÍLIOS
David Brookshaw -Bristol University, United Kingdom)
É interessante lembrarmo-nos que Portugal estava destinado a ter eleições presidenciais em 1958, e havia, entre a oposição à ditadura, verdadeiras expectativas de uma mudança na ordem política, com a esperada vitória de Humberto Delgado. É bem possível que Miguéis sentisse a possibilidade de alguma transformação na vida política do país, mas como sempre, era preciso ter cuidado nas declarações se quisesse passar a residir em Portugal devido à vigilância da PIDE. Mas o sucesso da sua permanência em Portugal ia ser determinado pela sua vida familiar, e nesta questão, Miguéis estava mais uma vez consciente do sacrifício feito pela sua mulher ao abandonar o emprego e a sua própria família, além de que a filha, já adolescente, era no fundo uma jovem americana cujo meio social preferido era naturalmente o dos Estados Unidos. Numa carta a Mário Neves, Miguéis escreveu já de Lisboa: ‘A obsessão da Camila, é claro, é a orientação da filha. A minha, egoísta, é o trabalho, que – só ele – pode acalmar-me e resolver os problemas desta mudança’. Por outro lado, os dois anos que Miguéis passou em Lisboa foram entre os mais produtivos da sua carreira literária, sendo o cúmulo dessa actividade a publicação de Léah e Outras Histórias, que ganhou o Prémio Camilo Castelo Branco em 1958. Por isso, não foi sem amargura nem receio que regressou de repente a Nova Iorque em finais de 1959. Mais uma vez, a razão explícita desta fuga se devia a questões familiares: Camila corria o risco de perder a cidadania americana se continuasse a residir em Portugal.
Esta foi a última tentativa da parte de Miguéis de se instalar na terra natal, o que não significa que tenha perdido o desejo de regressar ou que nunca mais visitou Portugal. Mas há um elemento de fantasia que entra nas suas aspirações a partir dos anos 60. Pouco tempo depois de regressar a Nova Iorque, escreveu a José Gomes Ferreira: ‘Vivo virado para LÁ, para os (…) enredos, conluios, espinhos e acúleos, e outras confusões e irritantes lisboetas – como se isto não existisse. E sabe com o que ando a sonhar? com aquela nova FUGA – lembra-se? Abaixo As Famílias, et à nous la liberté’, e imagina-os a apanharem o comboio para o Algarve, em busca do sol, do céu azul, e da ‘ociosidade creadora’. Passado algum tempo, voltou a escrever a Mário Neves: ‘O meu desejo obstinado é instalar-me perto de Lisboa num casal saloio adaptado, ou num casinhoto, para me entregar de vez ao meu trabalho – à meia dúzia de livros que quero fabricar’. A sua visão cada vez mais bucólica de Portugal era nutrida também pelas cartas da esposa do José Gomes Ferreira para Miguéis e para Camila, nas quais fazia a descrição da casa que andavam a construir perto de Sintra, e em que tentava convencê-los a comprar o terreno adjacente. Estávamos em plena década de 60, com a expansão urbana de Lisboa, a fuga da classe média para os arredores, e o fim da velha boémia literária dos cafés da Baixa, a Lisboa que ficava na memória de Miguéis. Mesmo assim, fez uma última tentativa de voltar em meados de 1963, prevista uns meses antes numa carta a José Gomes Ferreira: ‘Período de decisões, temores, arrumações – trastes a levar ou não, livros, papéis, o horror das partidas definitivas…’ Mas a carta não manifestava grande optimismo, especialmente ao mencionar o constrangimento da Camila por ter de deixar o emprego: ‘… o desgosto dela é imenso, como vocês podem imaginar, porque esta era a substância da sua vida’, além de que a filha já se tinha casado na Califórnia. Em menos de um ano, Miguéis já estava de volta a Nova Iorque, e embora visitasse Lisboa de novo em 1966, na ocasião do falecimento da irmã, o sonho de um regresso defintivo esmorecera. Em Novembro de 1968, dois meses após o Salazar se ter retirado do poder, e quando o sonho de uma liberalização caetanista era ainda vivo, Miguéis escreveu novamente a Mário Castro, declarando que gostaria de passar mais tempo em Portugal, sem abandonar o apartamento em Nova Iorque, que ficaria para a Camila, a filha, ‘ou para todos consoante os casos’. A idéia foi repetida em Agosto de 1969: ‘… noto que os preparativos de viagem me são hoje muito mais penosos do que há poucos anos: da idade, ou da ideia de ter de regressar aqui… Um dos efeitos (…) foi pôr-me a sonhar a compra (ou outro modo de aquisição) de um apartamento minúsculo em Lisboa ou arredores: um poiso, um pied-à-terre’. Mas agora, não passavam dos vagos desejos de alguém com quase 70 anos, com uma pensão americana, uma neta americana, e uma mulher luso-americana que era, para todos os efeitos, uma neo-iorquina. No fundo, Camila, que tinha quase toda a sua família nos Estados Unidos, não se adaptara mais a Portugal do que Pola.
Por isso, Miguéis acompanhou de longe o 25 de Abril, e a correspondência com amigos ao longo do ano e meio seguinte, revela um desencanto com a evolução política, especialmente durante o chamado verão quente. Se esta atitude foi resultado da idade, ou da longa residência nos Estados Unidos, não se sabe. O almejado regresso definitivo nunca se realizou em vida. Miguéis morreu em Nova Iorque em 1980.
(Texto inédito)
Agosto 2009
David Brookshaw
David Brookshaw was born in London. He is Professor of Luso-Brazilian Studies at Bristol University, UK, with a specialist interest in postcolonial literatures in Portuguese, comparative literature, literature and migration, and literary translation. He is the author, among others, of Race and Color in Brazilian Literature (1986), Paradise Betrayed: Brazilian Literature of the Indian (1989), Perceptions of China in Modern Portuguese Literature (2002), and co-author of The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (1995). He has translated a number of books by Mia Couto, including most recently, Sleepwalking Land (2006), and River of Time (2008). He has also compiled an anthology of stories by the Portuguese writer, José Rodrigues Miguéis, who lived for many years in New York City (The Polyhedric Mirror: Tales of American Life), as well as translating stories of immigrant life in North America by the Portuguese/Azorean/New England writer, Onésimo Almeida (Tales from the Tenth Island), both of which were published in 2006.
NOTE: Foto acervo Lélia Nunes