Chegou-me a notícia que os amigos de Miguel de Figueiredo Côrte-Real há tempos receavam viesse a qualquer momento, embora não suspeitassem que tão cedo. É sempre cedo para se perder um amigo, tanto mais se ele é da estirpe do Miguel. Da última vez que o vi, a caminho do aeroporto de Boston, ele ainda exibia um aperto de mão fortíssimo e uma voz de caldeirão do Pêro Botelho brotando de dentro como uma força da natureza que ele sempre foi no seu porte atlético aliado a uma dignidade de gentleman. Ao telefone, de Lisboa, ainda falei uma vez com ele. Depois foi só com a sua incansável companheira, Maria de Melo, que nunca o largou nas horas de prolongado sofrimento de hospital em hospital. Mas estava lúcido dessa vez que fálamos e ainda me pediu que na Terceira eu solicitasse ao comum amigo e pintor José Nuno da Câmara Pereira uma capa para o seu livro que tanto queria ver publicado, o Arquivo Mariense – uma imensa e variada colectânea de documentos sobre a história de Santa Maria. Cumpri e o José Nuno aceitou de bom grado. Mas já só pude dar a notícia à companheira, que garantiu lha ia transmitir pois o Miguel, nos últimos tempos, voltava quase obsessivamente a esse assunto. Com o escritor Daniel de Sá, também seu amigo, com quem partilhava um passado de vivência na ilha de Santa Maria e um especial amor a essa terra, eu já tinha conversado e estávamos dispostos a avançar com a edição, que terá obviamente de ser concretizada, apesar de o autor não poder já ter o prazer de vê-la pronta.
O Miguel Côrte-Real era uma figura de outrora. No porte, no comportamento, no seu trato com todos. Era dono de uma memória prodigiosa. Levei-o várias vezes ao meu programa de TV e bastava apenas fazer-lhe uma pergunta; começava logo a desbobinar ininterruptamente sobre Santa Maria e S. Miguel e as suas gentes, remontando até ao povoamento, destrinçando genealogias e factos que mais ninguém conhecia (por ele coligidos ao longo dos anos no Arquivo Mariense), fruto do seu trabalho em arquivos (incluindo o famoso de Simancas, em Espanha) e de tanta documentação recolhida localmente. Até copiou à mão, ou dactilografou, milhares de páginas de documentos diversos, sobretudo de registos baptismais de Santa Maria que exibia orgulhosamente encadernados em grande estilo nas estantes em sua casa. Mandara também encadernar muitos dos livros da sua avantajada biblioteca açoriana, e que, por sugestão minha, ele acabou oferecendo à University of Massachusetts Dartmouth visto as condições em que ele queria fazê-lo (exigindo que a colecção não ficasse dispersa) não serem aceites por qualquer universidade. A Brown, por exemplo, não faria isso pela simples razão de ter demasiadas ofertas de bibliotecas particulares e não poder mantê-las em fundos separados. Além disso, neste caso, muitos dos livros seriam repetição de existentes no fundo geral da biblioteca.
Há inúmeras outras estórias a contar, mas não é este o momento. Uma delas tem a ver com as muitas tentativas feitas para que o seu espólio fosse adquirido pelos Açores. Estórias longas e nem sempre edificantes, mas que não são para este local. Todavia faço questão de deixar publicamente sublinhado que não partiu dele a ideia de lhe adquirirem o espólio. Ele só pensara em doá-lo. Os gestos interesseiros eram algo bem alheio à personalidade do Miguel. Era um apaixonado por livros e por história e fazia tudo por preservar ambos. Daí o seu grande envolvimento na direcção dos Amigos da Casa da Saudade, a biblioteca portuguesa integrada na Biblioteca Pública de New Bedford, para que incansavelmente trabalhou gratuitamente dando muito do seu tempo. Por idênticas razões colaborou bastantes vezes com o Whaling Museum, da mesma cidade, e deu apoio a tantos investigadores que pela Nova Inglaterra passaram a fazer pesquisa sobre os açorianos e os Açores.
A comunidade perdeu uma grande figura e eu perdi um magnífico amigo. Para além de uma preciosa fonte de informação, pois era imensa a que arquivava no cérebro e que nunca escreveu, embora tenha escrito bastante e publicado resultados das suas investigações, como por exemplo a desmitificação que elaborou de devaneios históricos sobre a passagem de Colombo em Santa Maria. Miguel Côrte-Real era um historiador nato que acima de tudo respeitava os factos e se coibia de misturá-los com mitos nacionalistas.
Em homenagem a esse homem, a esse digníssimo membro desta comunidade, aqui fica este punhado muito pequeno de factos sobre uma vida tão cheia deles que merece ser lembrada e emulada.
Pena, por estar longe, não lhe ter dado em pessoa um último abraço.
Adeus, Miguel.
Onésimo Teotónio Almeida