Memorandum
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Quando um dia “desembarquei” em S. Miguel como emigrante porventura oriundo do Além, sem carta-de-chamada nem passaporte, Miguel de Figueiredo Côrte Real já tinha chegado à (nossa) ilha, cerca de um quarto de século antes. Apesar da pequenez da ilha, nunca lá nos encontrámos: foi preciso atravessar o Atlântico para que o nosso encontro acontecesse… curiosamente numa zona não muito distante da que serviu de “oasis” ao desembarque dos peregrinos, em 1620.
Continuo a recordar vivamente o dia e o local do primeiro encontro com Miguel de Figueiredo Côrte-Real: no réz-do-chão da Tabacaria Açoriana, em Fall River, durante um convívio por mim organizado, destinado à apresentação pública do livro de um conhecido crítico literário oriundo da ilha Terceira. Aconteceu que, a dado passo da breve alocução então oferecida aos participantes, voltei a tropeçar na tentação metaforista para justificar a preferência da maioria ilhéus terceirenses pelo Oeste norte-americano.
E disse assim: “… na rota de aproximação do aeroporto de Boston, diz-se que as luzes do Braga Bridge começam a piscar o olhar aos aviões com emigrantes em trânsito; consta que o odor a enxofre das caldeiras micaelenses começa a invadir a imaginacão dos passageiros terceirenses, que imploram junto do piloto para que prossiga viagem rumo Oeste, a caminho das lindas “praias-da-vitória” da costa californiana…”
Ora aconteceu que na ponta final daquele convívio (alguém registou uma foto do episódio), dei por mim integrado num pequeno grupo que entretanto foram sucessivamente dizendo adeus à vida: o poeta JoãoTeixeira de Medeiros, o cronista Heldo Braga, e agora o excelso amigo Miguel Côrte-Real, ilustre bibliógrafo…
Durante mais de duas décadas, muito aprendi com a experimentada maturidade sócio-cultural de Miguel Côrte-Real. Como é fácil imaginar, durante anos, procurei (como autodidacta) compreender a cínica crueldade do feudalismo micaelense, através dos manchos de gavela da pobreza rural. Hoje sinto-me melhor preparado para dissecar racionalmente o silenciado tema da “crueldade jesuítico-feudal“, graças ao companheirismo e ao saber acumulado do “insider” Miguel, que preferia ser príncipe leal da fraternidade do que paladino da democracia republicana.
Continuo herdeiro do antigo código que recomenda que conversas entre dois amigos não são comícios de três. Entre nós, o único roda-pé ideológico que comungávamos era baseado no dizer anteriano: “a humanidade é mais ignorante do que má“. Não vou mencionar episódios remotos e recentes que provavelmente terão estoirado a sua “fortaleza” psicológica; nem seria sensato trazer a público ressonâncias do torpor psicológico de quem quase não tinha amigos vivos da sua geração. Felizmente, existe uma companheira (Mulher de comprovada dignidade emocional) que esteve sempre a seu lado no último quartel da sua longa e estimada existência: madame Maria Melo, a quem reitero as minhas sinceras condolências.
Adeus, Miguel. Como bem sabes, ficámos atrás por mais uns tempos para cuidar das nossas prioridades, sem esquecer a protecção da tua honrada memória que não merece ficar escondida na atamancada prateleira do tempo…
João-Luís de Medeiros
Rancho Mirage, California
22 de Julho de 2010