Miguel, o último Corte Real?
A maneira como os adultos nos tratavam é uma das recordações mais gratas que guardo da minha infância em Santa Maria. Não nos viam como crianças, infantilizando-nos e infantilizando-se, mas como pessoas simplesmente. Não tinham o ar de superioridade de quem sabia tudo porque a vida lhes ensinara muito. Eram assim, por exemplo, o Sr. Armando Monteiro, o Padre Serafim de Chaves, o Sr. Israel Pereira, o Sr. Dalberto Pombo… e, claro, o Miguel Figueiredo Corte Real. Uma figura com uma aura quase mítica, apesar de ser ainda um homem muito novo. Uma enciclopédia viva de conhecimentos históricos, uma inteligência brilhante ao serviço do saber, mas sobretudo da sua ilha de Santa Maria. Porque, se alguém pode pertencer tanto a uma terra que a própria terra parece pertencer-lhe, isso sucedia com o excelso amigo Miguel Corte Real e a Ilha-Mãe dos Açores. Por ironia do destino, ele haveria de carregar por toda a vida a pena de não poder exibir um bilhete de identidade que o declarasse mariense. Dificuldades criadas a seu pai por gente que não suportava facilmente opiniões diferentes fizeram com que a família tivesse de viver uma espécie de breve exílio em São Miguel. E foi assim que ele, mariense de tantas gerações quantas as que houve desde o povoamento até ao seu nascimento, acabou sendo oficialmente micaelense. Mas nada mais do que isso, porque as almas não pertencem ao lugar onde os corpos nascem.
Miguel Corte Real fazia parte daquele cultíssimo escol mariense que surpreende numa ilha abandonada ou esquecida durante séculos, depois de tantas esperanças levadas nos bojos das barcas que regressaram ao Reino com a certeza de que haviam aberto novos caminhos marítimos e começado uma nova era. Gente extraordinária, como Manuel Velho Arruda, Armando Monteiro, Jaime de Figueiredo, Luís Falcão ou Conceição Bettencourt. Tinha um porte físico que anunciava, ou denunciava, uma nobreza de carácter acima de todas as suspeitas. Profundamente honesto na procura da verdade, também ele não resistiu à tentação de tentar vislumbrar na famosa pedra de Dighton o nome do seu “primo”, como ele lhe chamava, o navegador Miguel Corte Real. E nada descobriu mais do que traços indistintos. Este episódio pode dar-nos a medida da confiança que merecem os seus estudos históricos. Por isso o desgostou até ao desespero uma inexplicável suspeita a respeito da origem da enorme quantidade de documentação que conseguiu acumular ao longo da vida. Havendo copiado ou fotocopiado centenas e centenas de valiosíssimos exemplares, tinha um respeito sagrado pelos originais e pelos lugares a que eles pertenciam. E foi esse seu trabalho, como que de bibliotecário medieval, que acabou por salvar do esquecimento total muitos documentos que haveriam de perder-se por incúria humana. O boato foi lançado por alguém que nunca vira a sombra sequer da sua biblioteca, e que julgara que o Miguel Corte Real se apossara dos próprios originais. A sua dor foi tão grande que chegou a pensar na hipótese de queimar todo o espólio.
Um dia a vida do Miguel Corte Real cruzou-se com a minha de uma maneira dramática. Na manhã de onze de Março de 1959, a direcção responsável pelas obras no Aeroporto estava reunida para despedir pessoal. O critério proposto por um dos membros foi o de serem dispensados os trabalhadores com menos filhos. Meu pai foi logo falado, porque éramos só a minha irmã e eu. Mas o Miguel disse que meu pai e minha mãe faziam grandes sacrifícios (e, acrescento eu, a minha irmã também) para eu poder estudar, pelo que não seria justo mandar meu pai para o desemprego. Estava neste ponto a discussão quando chegou um funcionário a anunciar que meu pai morrera. (A esta hora, certamente, meu pai já lhe terá agradecido a intenção.)
Obrigado por tudo, Miguel, dilecto amigo. Mas, por me teres morrido, morreu-me também mais um pedaço da infância.
Daniel de Sá