Winslow Homer (1836-1910)
Mini-saia ocidentalista
Numa noite de Primavera que já anunciava o Verão, o prédio parecia vivo. De repente transformou-se numa grande banheira centrada no meu quarto.
Inquieto, ao ver as horas a passar e o borbulhar insistente, fui falar com o porteiro. Disse-lhe que ouvia a água a escorregar pelas paredes sem que pudesse fazer o que quer que fosse para a deter. Ele foi cortês. Dignou-se a deixar o seu posto de guarda, subindo até ao meu apartamento. Sim, era verdade, ela corria mas que podia fazer se o dono do andar de cima estava para a China? Era um americano e teríamos que esperar até ele regressar. Tinham sido obras malfeitas. Momentos do diabo.
– Vamos chamar os bombeiros? – Insisti eu.
Disse-me que não me preocupasse. O dono viria no dia seguinte e com certeza falaria com os homens das obras para remediar a situação.
– Pois, suspirei, só que não consigo dormir até lá. Tenho grande sensibilidade auditiva. Agora só prego olho se cair de exaustão.
– Deixe, fico a fazer-lhe companhia. Ou por outra, hoje é o senhor quem me faz companhia. Sabe, trabalho no turno da noite e a minha vida é muito monótona. São noites e fio sozinho a olhar para as paredes, guardando um prédio que ninguém quer assaltar. Não me julgue um chinês qualquer. Tenho instrução! Aceitei este trabalho já depois da reforma para me sentir útil.
– Sentir-se útil? Então não trabalhou toda a vida? Já merecia descansar.
– Tenho muito tempo para dormir quando regressar à terra. Até lá, preciso de ajudar os netos a crescer. Sobretudo a mais velha que é um desassossego, bastante fora da casca, de pêlo em todas as ventas, não há quem a segure.
– Por que diz isso?
– Imagine o senhor que sai de casa vestida como deve ser, nem outra coisa seria de se esperar, porque o pai foi educado por mim e nós não brincamos quando se trata de polir as crias; mas depois anda pela rua a fazer figuras tristes. Não sei onde é que vai trocar de roupa. Outro dia por acaso vi-a com uma saia curtíssima em Coloane. Subiu-me o sangue todo à cabeça. Senti vergonha pela família inteira. O que estariam a pensar os nossos antepassados!
– O que entende por saia curtíssima?
– Bem, mal lhe tapava as cuecas. Sinceramente, só podem ser influências ocidentais…
– Não me diga que o senhor alinha pelos extremistas árabes e quer a sua neta vestida até aos dentes?!
– Não, não é isso. Simplesmente não percebo o que se passa com estas jovens, por que necessitam tanto de se afirmar…Creio que consideram despir-se um sinal de liberdade. Querem transmitir uma imagem de grande independência e pensam que subindo as saias se tornam autónomas.
– Talvez não se enganem muito. De facto, as mini-saias não fazem parte da cultura tradicional chinesa. Para lhe ser franco não me agrada que as mini-saias sirvam de pretexto a terroristas: violar mulheres, lançar bombas, etc. Continuo sem perceber muito bem o que se passa em certas zonas do mundo árabe. Bem sei que não se pode generalizar e nem todos os árabes são terroristas. Há muitos que não alinham em extremismos, felizmente…
– Pois então deixe que um velho chinês o ajude a compreender a questão do terrorismo. Alguns muçulmanos sentem-se profundamente revoltados com o modo de vida ocidental. Não gostam das mini-saias, não querem ouvir falar de liberdade para as mulheres, nem tão-pouco de liberdade em geral, e muito menos dessa invenção europeia e americana dos estados de direito regidos pela lei e não pela religião. Não engolem essa história e ponto. Abominam interferências e ponto ainda mais final.
– Até aí já tinha percebido. Nós, portugueses, salvamo-nos à risca da fúria terrorista. O meu pai costumava dizer que enquanto Portugal for essa uma bela estância de férias para os árabes, seremos protegidos. Eis um fraco consolo.
– Vocês, os espanhóis, os italianos estão a salvo, enfim todos menos os franceses, os ingleses, os americanos e, claro, os judeus, além dos aliados indianos e das gentes do Sudeste Asiático. Esses estão entre os primeiros alvos a abater. Os franceses e os americanos são os arautos das liberdades individuais e do liberalismo económico; os ingleses, os grandes impulsionadores do comércio consumista, que eles detestam, os judeus são os detentores omniscientes das finanças e velhos inimigos territoriais. Vamos encontrar as mesmas guerras pela terra na Índia. Todos em conjunto, com os americanos à cabeça, formaram colónias ou reocuparam terras e continuam a dominar o mundo, porque substituíram o controlo territorial pelo dum espaço informático em rede a que chamamos o mundo globalizado. Quer maior afronta?
– Sim, entendo, apesar do petróleo e dos rios de dinheiro em que nadam, os árabes são sempre postos de lado. Contam pouco e influenciam quase nada, mas escusavam de ter tanto ódio. Podiam afirmar-se de outra maneira mais civilizada sem matar nem destruir.
– Fala bem, mas ao escutá-lo, é-se levado a pensar que os outros não destroem. Em Israel são todos santos? Os americanos não promovem guerras? Os ingleses e os franceses não prosseguem pacatamente com as suas negociatas?
– É verdade não há santos, todos somos humanos e pecadores, mas terá de reconhecer que uns destroem mais do que outros…
– Eu, um velho chinês, tenho a chave do problema, só que ninguém me ouve. Sabe qual seria a cura milagrosa para o terrorismo?
– Diga, diga.
– Não seja apressado. Vamos devagar. Para que compreenda bem o que lhe vou transmitir há que voltar à mini-saia. Detesto ver a minha neta mascarada de ocidental. Ela é chinesa e não tem nada que andar de pernas à mostra. Portanto, quando afirmo isto também estou a ser um pouco ocidentalista…
– Mas, meu amigo, se assim o posso tratar, num mundo globalizado é inevitável que as mini-saias aconteçam!
– Quem comanda a globalização? Quais são os valores norteadores deste novo mundo? Na verdade a globalização afina pelos valores ocidentais. Ou seja, e falando em árabe revoltado, coabitamos um espaço individualista, onde se apregoa constantemente a liberdade, mas que se rege por uma férrea ditadura financeira e económica, consumindo sem parar como o nosso monstro glutão ao qual chamamos taotie (饕餮). Ninguém escapa à voragem deste monstro, nem mesmo a China que, por causa dele, se transformou numa imensa fábrica produtora. Mergulhámos no maior dos materialismos, sem qualquer temor ou respeito pelo mundo sagrado.
– Quer dizer que também pensa como os árabes e odeia os ocidentais?
– Não, nada disso. Estou apenas a explicar-lhe o ponto de vista dos terroristas. Pertenço a uma das civilizações mais antigas do planeta e condeno absolutamente todos aqueles que nos querem destruir. Mas deixe-me ser franco: não considero o modelo ocidental perfeito…
– Já que é tão aberto comigo, vou-lhe confessar duas ou três coisas desagradáveis no mundo oriental. Os orientais em geral, e salvo raríssimas excepções, não sabem respeitar as pessoas nem a sua intimidade…São de uma curiosidade sem limites, bisbilhoteiros, mesmo quando se trata de ajudar, impõem-se sem pedir licença…
– Permita-me que o interrompa. Fiz com que se zangasse de propósito para que viessem ao de cima os seus preconceitos em relação ao Oriente, afinal bastou uma pequena crítica ao modelo ocidental.
– Peço desculpa se me excedi.
– Está perdoado. Quer ou não conhecer a chave para a paz?
– Por favor, apesar do que proferi há pouco, tenho um grande respeito pela sabedoria chinesa.
– Ah!Ah! – Não se ria. Acredito que pertence a um povo de sábios, defensor do equilíbrio e da harmonia, e sei vai ajudar a fazer luz sobre este problema do extremismo que nos deixa a todos em constante agonia.
– Bem, então oiça. Os problemas acabam, ou pelo menos são atenuados, quando os ocidentais abdicarem do porte soberbo de donos da verdade absoluta e de um modelo civilizacional superior. Basta que larguem o ar majestático de quem é infinitamente melhor, porque gera um enorme mal-estar, que os intelectuais já baptizaram de orientalismo. Mas há mais. Quanto aos orientais problemáticos, têm de aprender a dialogar, apresentando as suas alternativas de uma maneira racional e convincente, sem as empacotar em doses de belicismo destrutivo forrado a motivos religiosos. No entanto, os ocidentais precisam de reconhecer que nem todos os orientais são iguais. Garanto-lhe que os chineses são muitíssimo moderados e quanto aos árabes, pois há de tudo, mas também os há bem-intencionados.
– Se bem entendi esta guerra termina quando abandonarmos as atitudes negativas de orientalismo a Ocidente e ocidentalismo a Oriente, aprendendo a aceitar e a respeitar os diferentes modos de estar no mundo. Afinal somos todos humanos, basta largar os preconceitos para que as coisas passem a correr de um outro modo. Antes de mais, é preciso interiorizar que todos rimos e choramos, sofremos e amamos. Se ligarmos o nosso olhar ao coração, o resto vem por acréscimo.
– Compreendeu perfeitamente.
– O seu conselho é sábio. Por isso concluo que, depois desta conversa, a sua neta vai passar a usar mini-saia sem pressões, quanto mais não seja por uma questão de coerência lógica, para que o senhor não seja acusado de ocidentalismo…
– Alto lá, não misture as coisas. Isso é completamente diferente. Por que motivo adopta ela um modelo que não lhe pertence?
– Desculpe, o modelo não lhe pertence a si, mas talvez possa ser o dela. Porque se mudam os tempos e a terra não pára de girar, provocando transformações que não podem ser comandadas nem por si, nem por mim, em suma nos ultrapassam.
– Hum…Boa noite que se faz tarde e o senhor tem de ir dormir.
– Será que a água já parou de correr?
– Não se fie muito nisso. Não conheço canalizadores chineses que trabalhem à noite. Ainda assim, bons sonhos.
Ana Cristina Alves– Professora Convidada do Departamento de Português da Universidade de Macau, onde lecciona as disciplinas de Questões Culturais na Tradução do Chinês/Português e Português Avançado. Colabora na Revista de Cultura e tem vários trabalhos publicados, entre os quais a tese de Doutoramento em versão encurtada, A Mulher na China (2007) e A Sabedoria Chinesa (2005), sendo ainda co-autora com Wang uoying de Contos da Terra do Dragão (2000) e Mitos e Lendas da Terra do Dragão (2010).
IMAGEM DE http://www.nga.gov/exhibitions/homerinfo.shtm