Morreu Ana Hatherly
Cobre-se de Luto a literatura e as artes visuais portuguesas
Faleceu nesta quarta-feira, 5 de agosto,aos 86 anos, a escritora e artista plástica Ana Hatherly em Lisboa, disse à agência Lusa fonte da Fundação Calouste Gulbenkian. Nasceu na cidade do Porto em 1929, Ana Hatherly teve um percurso transversal no cinema, artes plásticas, poesia e prosa, cruzando quase sempre as diferentes expressões artísticas. Tem o nome inscrito na vanguarda da poesia e na forma como o poema é escrito no papel, tornando-se numa obra visual.
Da sua biografia sabe-se que é licenciada em Filologia Germânica e doutorada em Estudos Hispânicos, Ana Hatherly tem ainda formação em cinema e música e foi professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde co-fundou o Instituto de Estudos Portugueses. A autora foi ainda uma das fundadores do PEN Clube Português e tem o nome inscrito na criação das revistas "Claro-Escuro" e "Incidências".
Iniciou a carreira literária em 1958 – celebrou 50 anos em 2008 -, tendo publicado nos primeiros anos as obras "Um ritmo perdido" e "As aparências". "Eros frenético", "Anagramas", "A dama e o cavaleiro", a série "Tisanas", "Rilkeana", "A mão inteligente" e "O cisne intacto: Outras metáforas – Notas para uma teoria do poema-ensaio" são algumas obras publicadas por Ana Hatherly, distinguida ao longo da carreira pela Associação Portuguesa de Escritores e pelo PEN Clube. A Sociedade Brasileira de Língua e Literatura distinguiu-a em 1978. Em 2009 foi distinguida como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
O espólio da autora está à guarda da Biblioteca Nacional, no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, e parte da biblioteca pessoal está na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.Nas artes visuais, tem obra presente em várias coleções, nomeadamente na Fundação Calouste Gulbenkian e no Museu de Arte Contemporânea de Serralves.
Fonte: Agência Lusa e Fundação Calouste Gulbenkian
A seguir, poemas que bem ilustram a poesia de vanguarda de Ana Hartherly, a mulher que soube ser voz na expressão de sua arte e na pintura da palavra poética.
Uma homenagem do Blog Comunidades à grande escritora de Portugal
Florianópolis,05 de Agosto de 2015.
Lélia Pereira Nunes e Irene Maria Blayer
. Esta Noite Morrerás
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu partiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres
partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações
de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito
é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier
tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos,.
a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que
o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir
de noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe
o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão
mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos
teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de
tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.
(Ana Hatherly, in “Poesia 1958-1978”)
Esta Gente / Essa Gente
O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente
Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente
Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente
Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente
O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente
Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente
NENHUMA!
A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente
(Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades" )