Morte e Ressurreição – História e Fé
Até ao século XIX, quem não acreditava em Jesus Cristo como a encarnação do Verbo Divino limitava-se, na maior parte das vezes, a negar a sua existência. Mas, a partir de certa altura, passou a ser praticamente impossível defender a tese da negação histórica de Jesus. E isso ficou a dever-se a uma exegese imparcial do Novo Testamento, à divulgação de historiadores como Flávio Josefo ou Tácito, bem como de toda a literatura do século II que se Lhe refere. De alguma maneira a própria arqueologia também tem contribuído para tornar credíveis as grandes alterações religiosas que resultaram da pregação de Cristo e dos apóstolos e seus sucessores imediatos.
Cem anos, ou menos, é pouco tempo, mesmo para memórias transmitidas oralmente. Por exemplo, ainda seria possível reconstituir o essencial da Guerra Civil entre D. Pedro e D. Miguel, apenas a partir do que tem sido dito de geração em geração. E, no entanto, todo o Novo Testamento terá ficado completo entre cerca do ano 50 (1ª Carta aos Tessalonicenses) e finais do século I (Evangelho de S. João e Apocalipse). Resolvida praticamente a questão da existência, surgiu outra para satisfação dos espíritos mais racionalistas. Passou a fazer-se a distinção entre o Jesus da História e o Jesus da Fé. O Jesus da História seria aquele que se aceita vagamente como um judeu das primeiras décadas do século I da nossa era, mas acerca de quem não se pode ir muito mais longe do que isso. O Jesus da Fé seria o que vem relatado nos Evangelhos, conforme a crença na sua condição divina.
Um dos factos que os não crentes negam é, naturalmente, a ressurreição de Jesus bem como as outras que vêm relatadas no Evangelho. Porque uma ressurreição é um acontecimento fora de qualquer possibilidade. Nem Deus poderá provocar uma ressurreição no sentido absoluto da palavra, porque isso não faz parte da essência da vida. Uma ressurreição seria como criar uma nova vida, e a Criação foi única e definitiva. Mas a ressurreição de Jesus é o fundamento da nossa crença. Como disse S. Paulo, sem ela a nossa fé seria vã.
Então as outras três ressurreições que os evangelistas narraram?… Tê-lo-ão sido num sentido absoluto? Os ressuscitados estariam na verdade mortos? A sua alma ter-se-ia separado do corpo e, como diziam os judeus, estariam já no “seio de Abraão”?
A passagem da vida à morte é também a passagem do tempo à eternidade. E só Deus é senhor da eternidade e do tempo. Aqueles que Jesus ressuscitou não estariam, portanto, mortos no sentido verdadeiro do termo. Teriam sofrido uma morte aparente, embora irreversível se não tivesse havido a intervenção milagrosa de Jesus. Ele mesmo o diz, de um modo mais ou menos claro, quando Lhe é dada a notícia de que Lázaro estava doente: “Esta doença não é de morte, mas sim para a glória de Deus, manifestando-se por ela a glória do Filho de Deus.” Alguns dias depois, disse ainda: “O nosso amigo Lázaro está a dormir, mas Eu vou lá acordá-lo.” Como também dissera antes da ressurreição da filha de Jairo – “a menina não está morta, dorme” –, o que provocou o riso de quem O ouviu.
No entanto, estas ressurreições não parecem ter causado nos que as presenciaram um espanto maior do que algumas curas. E a razão dever-se-á ao facto de, para os judeus, a verdadeira morte, o momento definitivo em que a alma abandonava o corpo, só acontecer quando o cadáver começava a cheirar mal, ao quarto dia. Por isso Marta, depois de um primeiro momento de fé, julga impossível o regresso do irmão à vida, prevenindo: “Senhor, já cheira mal, pois já é o quarto dia.”
Com a ressurreição de Jesus, tudo parece diferente. Não havia esperança entre os seus discípulos de que Ele pudesse regressar. O aparente abandono a que Deus O votara até à morte na cruz, assim como o corpo destroçado pelo horroroso martírio, eram motivos suficientes para que duvidassem da sua ressurreição. Talvez por isso é que os evangelistas se preocuparam em apresentar o maior número possível de provas desse acontecimento. O próprio S. Paulo, consciente da importância da Ressurreição, invoca não só o seu testemunho pessoal mas o de centenas de discípulos que terão visto o Senhor ressuscitado. E fica-nos o eco daquela repreensão de Jesus perante a incredulidade de Tomé: “Felizes os que crêem sem ter visto.”
Daniel de Sá
Nota: Ilustra o texto a pintura Ressurreição de Cristo (1499) do mestre do Renascimento Italiano Raffaello Sanzio; óleo sobre madeira, 44×52 cm. Pertence ao Museu de Arte de São Paulo desde 1954.