Hoje escrevo não “da minha praia”, na Ilha de Santa Catarina e sim “na Praia de Nemésio” estimulada pelo fôlego nemesiano que envolve o lugar neste Curso de Férias sobre Vitorino Nemésio promovido pela Câmara da Praia da Vitória.
Respiro Nemésio na Casa das Tias, onde o escritor passou parte da infância e juventude, e pela bonita Praia da Vitória na Ilha Terceira de Jesus. Vejo-me de cara com o poeta na ponte pendular entre o tempo e a eternidade, navego na singularidade do narrador de Mau Tempo no Canal a mexer na composição do Eu representado, como articulador de coisas que é. Para, afinal, mergulhar no kronus, expressar o domínio sobre a passagem do tempo, não a temporalidade linear cronologicamente fechada, mas aquela que nos remete a uma temporalidade aberta, infinita, por trilhas de suas crônicas de viagens e saberes. Meio milênio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo, – e o tempo é espírito em ‘fieri’ (In Insula 1932)
Um desfile de crônicas, como marchas de carnaval, se apresenta cada qual com a sua fantasia, brilho e cor desde a “Número 1” (Jornal Observador: 1971), o “Encontro de Angra”(de 7/11/1946), autobiografia, disfarces verbais na crônica do filho pródigo; “Rancho de Reis”- a prosa evocativa de Natal ou de Reis Magos escrita por Mateus Queimado com a “permissão” de Nemésio, (Jornal de Vitorino Nemésio:1973), a “Grilhetas”(Diário de Lisboa,1931) que traz como mote o ofício do escritor à varejo – aquele que tece diariamente sua prosa e os condicionamentos da produção do escriba, num jogo de sobrevivência casando prazer com dever ou fazendo da prosa moeda de troca para pagar o pão que o alimenta. Deixa-nos a lição de que “O jornalismo é uma arte de surpresa e instantaneidade como a cirurgia de urgência. Acometem-se as coisas, – não se tratam as coisas. E por isso a pena periódica trabalha por incisão e não goza do calmo deslize, tão agradável, das outras penas.” Se nessas incisões diárias o cronista deixa-se ficar em “carne viva”, o cronista-poeta rasga o coração deixando fluir a alma por seus dedos que bailam sobre a máquina de escrever, ora em ritmo de tango, ora em suave valsa de lembranças e saudades seguindo o “fio bambo de uma meditação ocasional”.
Meditação Ocasional, escrito em pleno gozo de suas férias de verão de 1947, sem muita vontade de escrever sobre o tema do artigo e enveredar no debate sobre a existência ou não de uma ciência da Literatura e seu arcabouço teórico ou sem apetecer discutir a cientificidade da Literatura, inicia com um passeio delirante sobre a paisagem. “Da minha janela de verão vê-se o céu azul da praia, e uma linha de acácias e loureiros acusa os ventos do mar. Esta luz de oiro que precede o pôr do sol e se faz quase lilás na linha de água é o bastante,…” (In: Viagens ao Pé da Porta, Obras Completas 2ªed.) A mesma linha d’água que espio ao longe, o mesmo céu azul que descortino da varanda de ferro forjado, desta bela casa do século XVIII, com traça da arquitetura do “Ramo Grande”, em que viveram as tias de Vitorino Nemésio. Os sinos da Igreja do Senhor Santo Cristo das Misericórdias num badalar fúnebre chamam atenção para o duplo cortejo que se forma em seu átrio a caminho do cemitério, uma cena surreal do ritual da morte dando vida ao silencioso espaço em dias de verão, digna do mestre Federico Fellini.
No recinto da Casa das Tias, o Curso de Férias sobre Vitorino Nemésio segue em ritmo animado com leitura de textos, discussões envolvendo professores e alunos vindos das Ilhas, do Continente, da Diáspora, diferentes vozes e de distantes geografias que ali se reúnem em torno de Nemésio e sua prolífera produção literária. Vagueio o olhar inquieto por toda sala. Um álbum de fotografias que passa de mão em mão traz do passado recente outras vozes que comemoraram os 50 anos da publicação do Mau Tempo no Canal durante o IV Encontro de Escritores Açorianos em 1994. “Como tudo isso respira o ar de quem não vejo!
Em corsos de memória encontro com o Brasil da Caatinga e Terra Caída – A Jornada do Agreste (1958) a transição entre a Mata Atlântica e o Sertão do “carcará” e me surpreendo com a intensa beleza descritiva da paisagem verdejante e a mobilidade da vida seca que escorre lá adiante como o fio d’água “engolido” pela terra rachada ante o olhar tácido do sertanejo. Crônica escrita com uma paixão imensa por este Brasil do cangaço que ainda me é tão desconhecido. Finalmente, me perco por entre as delícias do “O Espírito Santo do Encantado” em O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos (1954) onde transparece a sensibilidade e a sedução da exuberante paisagem tropical, os conhecimentos históricos e culturais e uma sentida e vivida luso-brasilidade, numa atitude que vai além da análise etnográfica do viajante embevecido com o país ou da voz a falar de “uma realidade histórica solidária”. Tanto é que seu fascínio chegou ao ponto de mimetizar a linguagem brasileira em Poemas Brasileiros numa notável homocromia. Vitorino Nemésio se deixou cativar irremediavelmente pelo sabor, cores e sons da terrae brasilis. Basta avaliar o relevante lugar que o Brasil ocupa em toda sua obra, visível na poesia, na crônica, na ficção, no ensaio, na conferência, na crítica literária. Descobriu as raízes da brasilidade assentadas na cadência vibrante da literatura de cordel, do som chorado da viola, da farsa dramática do mamulengo, da dança mística do Boi-Bumbá, da religiosidade do reisado à folia do Divino do Encantado em Inhaúma, do ritmo quente do batuque nos terreiros de candomblé e do ondular sensual da cabrocha no balanço envolvente do samba. Um Brasil tão brasileiro que despertou a imaginação do poeta, que conquistou o humanista e o cativou para sempre. Escreveu que Amar é contar. Nemésio contou e amou muito: terras, mar, ilhas e gente.
Na Praia de Nemésio percebi a dimensão notável do poeta, do cronista, do hábil narrador e articulador de sentimentos, de palavras, de personagens na construção do romance Mau Tempo no Canal com seus conflitos sociais e passionais,com sua visão antropológica e telúrica. Acenos de ternura do homem por sua Ilha mesmo longe, no desterro,o desenraizamento sentido e a subjacente açorianidade – “Como as sereias temos uma dupla natureza:somos de carne e pedra.Os nossos ossos mergulham no mar.”
Voltei à rotina dos meus dias na Ilha de cá. Na bagagem, o encantamento, a chama acesa do espírito nemesiano tatuado aqui dentro como a paixão pelas Ilhas uma sinfonia de cores, de sons, de cheiros, o mar azul profundo, as gaivotas, a negra areia e a rocha vulcânica.
Relíquias de mim mesma!
Casa da Tias, Praia da Vitória,Ilha Terceira
23 de Julho de 2009