Não sei se chego a tempo com a minha colaboração para a Insula no V
centenário do descobrimento dos Açores. É uma colaboração estritamente
sentimental, uma espécie de minuto de recolhimento em meia dúzia de
linhas (…)
Quisera poder enfaixar nesta página emotiva o essencial da minha
consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apêgo à terra, êste amor
elementar que não conhece razões, mas impulsos; – e logo o sentimento
de uma herança étnica que se relaciona íntimamente com a grandeza do
mar.
Um espírito nada tradicionalista, mas humaníssimo nas suas
contradições com um temperamento e uma forma literária cépticos, – o
basco espanhol Baroja, – escreveu um livro chamado Juventud, Egolatria
“O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de
liberdade e de câmbio”. Escreveu a verdade. E muito mais quando se
nasce mais do que junto do mar, no próprio seio e infinitude do mar,
como as medusas e os peixes. Era este orgulho feito de singularidade e
solidão que levava Antero a chamar aos portuguêses da metrópole os
seus “quási patrícios”.
Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de
todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási
religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o
logos, na água. Daqui partiria o fio das reflexões que me agradaria
desenvolver.
Meio milénio de existência sôbre tufos vulcânicos, por baixo de
nuvens, que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga
respeitável de tempo, – e o tempo é espírito em fieri. Mais outro
tanto, e apenas tocaremos metade da memorialidade de Vergílio.
Somos, portanto, gente nova. Mas a vida açoriana não data
espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num
passado telúrico que os geólogos reduzirão a tempo, se quiserem…
Como homens, estamos soldados històricamente ao povo de onde viemos e
enraïzados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria
entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale
outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações
escritas inserem uns cinqüenta por cento de relatos de sismos e
enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e
de pedra. os nossos olhos mergulham no mar.
Mas êste simbolismo está muito longo de aludir com clareza aos
segredos do ser açoriano, e mais parece um entretenimento literário do
que um sério propósito de pôr o problema da nossa alma. Um dia, se me
puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações
para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio
sôbre a minha açorianidade subjacente que o destêrro afina e exacerba.
Antes dêsse dia de libertação íntima mal poderei fazer-me entender dos
outros. Um aceno de ternura, um vago protesto de solidariedade insular
e a distância que é o muito que estas linhas podem significar.
Coimbra (Cruz de Celas) 19 de Julho de 1932
VITORINO NEMÉSIO