No coração da história e na história de cada coração!
Todos os anos, as Festas do Senhor batem à porta de cada açoriano e de um modo especial de cada micaelense. E neste ano de 2012, ano de todas as crises e de todas as incertezas, batem à porta com a mesma intensidade com que o Provedor da Irmandade dá os toques tradicionais, a pedir às religiosas guardiãs da Imagem que autorizem que esta seja entregue ao povo para que durante dois dias a venere como “Príncipe das Ilhas” e Rei do Universo.
Em cada casa, mesmo na mais pobre, mesmo na mais distante, onde o progresso teima em não chegar, nos acessos e na qualidade de vida, há um cheiro diferente, há um sentir de algo que vai acontecer, porque, embora repetido, em cada ano, no ritual e nos gestos, cada festa do Senhor Santo Cristo é mesmo um acontecimento que marca e que perdura.
Chegam as cartas de longe, regadas de saudade. Tocam os telefones e agora, multiplicam-se os emails. Marcam-se viagens, mesmo quando se exploram, em dinheiro e falta de vergonha as pessoas que nesta data querem vir aos Açores. Acertam-se datas e a espera torna-se alegria incontida que bate à porta dos vizinhos, familiares e amigos que, no dia certo, sem fazer conta de tempo nem de hora, enche o Aeroporto, como outrora já encheu o cais, mãos a acenar, sem saber bem se saudar ou se limpar as lágrimas de tanta saudade que a festa do senhor vem matar por uns dias.
Nos últimos tempos, as festas do Senhor Santo Cristo estão a tornar-se num ponto de encontro diferente mas mais abrangente. Já não são só os emigrantes que regressam, com filhos e netos, descendentes desta aventura açoriana no Mundo. Hoje, já são muitas famílias de imigrantes, dos países lusófonos, dos países do Leste Europeu e de outras proveniências que querem que os seus familiares venham e estejam com eles uns dias, para conhecerem a festa, culto e a devoção ao Senhor que na invocação de Santo Cristo vão aprendendo a amar e a conhecer o dia a dia da sua “diáspora” em São Miguel.
Eles são e vão ser a “nova ilha dos Açores” que precisa de um lugar neste mar de fé para se afirmar, para mostrar as suas próprias tradições e também para serem agentes de transmissão, nos seus países de origem, dos costumes que aqui vieram encontrar.
É o sentido pleno das festas do Santo Cristo que vão ganhando uma dimensão cada vez mais universal, independentemente de alterações que têm vindo a ser introduzidas e que fazem com que determinados ritos vão sendo alterados, como aliás, foram em outras alturas.
Em cada ano, um motivo novo, em cada ano, um pensamento diferente, para novas necessidades, para novos problemas, todos a caber na imensa misericórdia que emana do rosto do Senhor, Ele mesmo com nova e sempre diferente expressão, como só um invulgar escultor poderia ter criado.
Cheira a festa, a convívio a esperança que se adensa neste ciclo de saudade que enforma e informa a gente das ilhas, com o mar por horizonte e a distância como companhia. Os que estão e recordam os ausentes; os que partiram e fazem dos seus pensamentos caminhos de alma a percorrer cada canto, cada rua, cada nesga de altar lavado nas lágrimas do não poder regressar; e ainda os que chegam e de longe vêm e aqui fazem tempo de trabalho e de melhoria de vida.
Gente pobre e humilde, gente a quem tudo parece ter faltado nos seus países de origem, mas gente que sonha com um lugar ao sol, como tantos dos nossos que largaram o sacho, as vacas, a incerteza da mesa vazia, pelo desejo da aventura em países distantes e que levantaram templos e associações, criaram festas, enraizaram tradições, fundaram Impérios, partilharam costumes e afirmaram a açorianidade nos quatro cantos do mundo, em muitos dos quais desapareceu a língua e a ligação à terra, mas manteve-se o culto pelo passado, inculturado e transformado, mas de profunda raiz açoriana.
O Senhor Santo Cristo foi com eles, desde a primeira hora, de várias formas, em quadros, imagens e registos. Hoje, vai para outros países, os países de imigração, pelas mãos de tantos imigrantes que não resistem em levar ou em mandar para as suas famílias, uma foto, uma imagem ou uma simples recordação em que figure o Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Foi um gesto destes que me inspirou este pequeno e despretencioso trabalho. Numa das minhas silenciosas visitas ao Santuário, ao sair de uns momentos junto do Senhor, vi um imigrante com um postal e um terço na mão. Ele vinha da Roda e ia entrar na Igreja. Saudei-o e no curto diálogo soube que era de Cabo Verde. Quando lhe disse que também conhecia algumas ilhas daquele arquipélago país, foi como uma torneira que se abrisse. Que estava cá há quatro anos, que trabalhava na construção mas queria estudar para ir mais longe, que deixou os pais e mais quatro irmãos na ilha e mais, de tudo um pouco, até chegarmos ao senhor santo Cristo. Tocou-me a pergunta que me fez? Como veio este Senhor parar aqui?
Claro que tentei explicar com elementos históricos, mas ficou-me no pensamento e no coração a pergunta: Será que este Senhor é um “Imigrante” em São Miguel? Sim, porque a Sua Imagem veio de longe e nem o nome do Seu escultor se lhe conhece. E fiquei ali a ver a fé daquele homem de Cabo Verde que também viu no “Ecce Homo” um lenitivo para os seus problemas e um lugar para desabafar saudades. Estampa e terço na mão.
Prometi a mim mesmo que este seria o meu testemunho nestas festas do Senhor deste ano, porque os caminhos da vida andam cruzados com mistérios que só o Coração de Deus conhece, e num mundo que tenta esconder e relegar Deus para planos não essenciais da vida, é dos humildes que surge a mais genuína e pura manifestação da Sua presença.
Quem pode mandar e orientar o coração de cada homem e de cada mulher que olha o Senhor na penumbra do altar, dentro das grades do Coro-Baixo , ou no brilho do trono de luz e de glória do seu andor? Quem pode penetrar no sentido de cada olhar, na magia de cada gesto ou no sentimento de cada promessa? O Senhor, nesta Imagem, tornou-se o “Cativo” das Ilhas para libertar outros tantos cativeiros que a linguagem humana não entende.
Veio para o Vale de Cabaços, da Caloura, na bagagem de duas religiosas, e como “Cativo” foi transferido para Ponta Delgada, porque com a pirataria de então que assolavas as zonas mais inóspitas da Ilha, “nem Deus, nos templos e sacrários estava seguro”, como diria António Vieira, falando da guerra.
E hoje continua… vive “Cativo” durante todo o ano. Mas nestes dias, deixa de estar á espera no silêncio dos dias e no escuro das noites.
Sai. Vai ao encontro do povo e deixa-se ser olhado, sem olhar quem nem como…
E este olhar do povo é a coisa mais bela que pode existir e que ninguém tem, sequer a veleidade de julgar, porque “o Amor tem olhos que os olhos deste mundo não alcançam”…
Santos Narciso
In: Jornal Correio dos Açores, de 12 de maio de 2012, Sábado do Senhor.
Ponta Delgada,Açores.
O autor, José Manuel Santos Narciso, é jornalista de profissão, Director Adjunto do ‘Correio dos Açores’.
(*) Fotos da Procissão Musança da Imagem de 12 de Maio de 2012. http://www.facebook.com/senhorsantocristo