Sinopse
Um dos tradicionais conceitos de nação é o de uma comunidade política autônoma e de território definido que partilha instituições comuns (constituição, governo, sistema judiciário). Ou o de uma comunidade de indivíduos ligados por identidade de origem, língua, costumes, religião. Atualmente, no entanto, as nações tiveram suas fronteiras rompidas e extrapoladas: culturas, línguas e costumes dialogam constantemente em um processo permanente de diáspora. Reina, portanto, um desejo cosmopolita de estar no mundo, mas sem, no entanto, deixar de estar no local. É desse entre-lugar, marcado pelo apagamento de fronteiras espaciais ou temporais, que o professor da Escola de Comunicação da UFRJ, Denilson Lopes, lança um olhar lúcido e sem nostalgia sobre as questões culturais da atualidade, notadamente a produção cinematográfica.
Nos 10 ensaios de No coração do mundo, Denilson Lopes se apoia e inspira-se na noção de interculturalidade – o fato de dar importância cada vez maior aos trânsitos não só geográficos, mas às viagens feitas pelos meios de comunicação de massa – para estudar como se dá a hibridização multicultural a partir da análise de obras do cinema contemporâneo. O pesquisador traça um diálogo profícuo com as ideias de Silviano Santiago, Nestor Garcia Canclini e Arjun Appadurai, entre outros nomes, para mapear de forma original a produção cinematográfica dos últimos vinte anos.
No material de análise de Lopes, estão os filmes de Claire Denis, Wong Kar-Wai, Jia Zhang-ke, Abderrahmane Sissako, Wim Wenders, Lucrecia Martel, Pedro Costa, Béla Tarr, Lisandro Alonso, Tsai Ming Liang, Hou Hsiao-Hsen, José Guerín, Karim Aïnouz, Esmir Filho, entre outros. Nessas obras, o autor busca ver a maneira como os meios de comunicação levaram os processos de trânsito entre culturas bem além dos vocabulários cunhados a partir dos estudos de fluxos migratórios e diásporas. “Fui em busca de algo que estava na minha cabeça, em parte na África subsaariana, em alto-mar, no Taiti, onde as fronteiras são apagadas sem deixarem de existir, nas músicas latinas ouvidas em Hong Kong… Lugares a que nunca fui. Lugares a que os filmes me trouxeram”, afirma.
A partir de personagens desprovidos de referenciais espaciais, temporais ou reflexivos, que não mais remetem a um cinema nacionalmente engajado ou revolucionário, como nos anos 1960, Denilson Lopes aponta para um território de fronteiras quase invisíveis habitado por pessoas comuns. Assim, ultrapassando o conceito de cultura nacional, o autor acolhe o homem comum em diferentes paisagens culturais para falar sobre temas como a fragmentação e o fim das utopias. E mostra como o fluxo de mercadorias, informações e tecnologia contemporâneo passou a inteferir no cotidiano deste homem, que vive no coração do mundo, espaço descentrado, dos afetos. Para além do cinema, o autor incorpora reflexões que dialogam com a literatura, o teatro e as artes visuais como um todo. Para além de noções como nação, obra e autor, trata-se da defesa de uma visão comparativa e cosmopolita da arte contemporânea.
(Trechos do Prefácio)
Primeiro que fosse contra a nação. Era contra a nação. É contra a nação, qualquer nação. A nação como conceito, categoria, identidade, construção, narrativa. Depois mais. Pensei. Mais do que ser contra, ao transitar por estas imagens o que me interessava era pensar aquém e além da nação, com a ajuda de Silviano Santiago, Néstor Garcia Canclini e Arjun Appadurai. Aquém ao ver as conexões mais inesperadas até nos locais mais aparentemente distantes de todos os centros. Continuava na cabeça uma frase ouvida de Eneida Souza. O terceiro mundo não é aqui. Desejo cosmopolita de estar no mundo sem deixar de estar no local. Mas o que seria então este lugar físico, afetivo, material de que se fala, de que falo? Estas são algumas possibilidades. Acabou não virando panfleto. Tanto melhor. Apenas um passeio de um crítico transcultural que acha necessário que também no Brasil se produza, se escreva, se fale sobre o mundo, sobre com o que, com quem se dialoga, com quem não parece próximo, mas pode vir a ser. Assim fui em busca de algo que em parte estava na minha cabeça, digo coração, em parte estava na Africa subsaaareana, em alto mar no Taiti, onde as fronteiras são apagadas, sem deixar de existir, pelas músicas latinas ouvidas em Hong Kong, no rosto colado ao templo de Angkor Vat. Estava lá. Lugares que nunca fui. Lugares que nunca deixei de estar. Meus olhos estavam lá. Nos pampas em direção a Iguaçu, passeando por ruínas na Armênia. E tantas outros lugares-imagens que se somam e se perdem como se estivesse andando num dia só numa bienal de arte. Ao final, ficam fragmentos, gestos, fantasmas do que nem se sabe se existiu. Foi o que queria ver? Foi o que pude ver? Não importa. Talvez importe. Não sei para quem. Além de mim. Além dele que não me sai da cabeça, que me acompanha e muda em cada novo sorriso entre trocado. Sorriso que mal aconteceu e já começou a se dissolver, embaçar, se perder.
Como pensar o cotidiano e o homem comum, o cotidiano do homem, ou simplesmente o comum como potência estética no quadro contemporâneo marcado pelos fluxos da globalização e da transculturalidade? Começamos nossa viagem por filmes Claire Denis, Sissako e Wong Kar Wai e por como os meios de comunicação levaram os processos de trânsito entre cultura bem além dos vocabulários cunhados a partir dos estudos de fluxos migratórios e diásporas. Este movimento nos levou mesmo a pensar se podemos pensar um cotidiano global, não derivado simplesmente do transito de mercadorias e informações, ou nem mesmo associado à presença de um aparato tecnológico, mas como todos estes elementos (mercadorias, informações, tecnologias) constituem o cotidiano, aa experiência no dia a dia. Procurei esta resposta não na teoria (não sou um teórico), transitando por outros filmes, a começar por Wim Wenders e Jia Zhang-Ke, e se resgatei no cinema moderno, trabalhos de Ozu, Bresson e Antonioni, foi para ganhar energia, combustível, para alargar esta constelação de personagens comuns que tomei como ponto de partida: Felicité de Um Coracao Simples de Flaubert e Prima biela de Uma Vida em Segredo de Autran Dourado em contraponto ao Bartleby de Melville como estudados por Deleuze e Agamben. Para depois seguir por “Damnation” de Béla Tarr, “Quarto de Vanda” de Pedro Costa, “Rosetta” dos irmãos Dardennes, “Humanidade” de Bruno Dumont, “Pântano” de Lucrecia Martel, “La Libertad” de Lisandro Alonso.
Como seria viver a vida, compartilhar hoje, o que seria este homem comum, não pensado em contraponto à cultura midiática, nem como resistência aos meios de comunicação de massa, o que quer que isto signifique, mas pensar de dentro, no coração das coisas, objetos e seres para quem as mídias, como já defendemos em outro momento, não são só mercadoria, mas afeto e memórias, matéria concreta. Neste quadro é que nos debruçamos sobre homens e mulheres comuns, mas sobretudo, e isto, é fundamental, personagens comuns porque se trata de um posicionamento no mundo mas também uma busca de uma estética centrada no neutro como discutiu Roland Barthes, marcada pela rarefação e contenção, traduzida em uma dramaturgia minimalista, em uma preocupação com o enquadramento, com a luz, com a montagem, com a construção do espaço e do tempo. Personagens que são quase fantasmas na sua fragilidade subjetiva e afetiva, perdidos no espaço, no tempo como podemos ver em “Vive l´Amour” e “Good Bye Dragon Inn” de Tsai Ming Liang, “Maborosi” de Hirokazu Kore-eda, ” Eureka” de Shinji Ayoama, “Na Cidade de Sílvia” de José Luis Guerin, “O céu de Suely” de Karin Aïnouz e ” Os Famosos e os Duendes da Morte” de Esmir Filho.
Não sou um crítico, não faço panoramas nem avaliações, só me interessa falar do que me suscita, sou um ensaísta. Não me interessam o cinema, a literatura, o teatro, nenhuma linguagem artística em separado nem análises exaustivas nem autores. Só alguns filmes, romances, poemas, peças dos quais em breve, sei, me entediarei. Há um profundo desejo de destruir, rasgar, dilacerar essas imagens retiradas, descontextualizadas. Isto quase não é mais crítica. Seria fazer um outro filme, um romance? Não sei. Escrever foi uma luta diária contra o cansaço, contra o tédio, contra a dispersão. Se conseguir terminar foi devido a estes pequenos gestos diários, a algumas imagens que insistiram um pouco mais antes de eu as esquecesse.
Também disciplinas acadêmicas não me mobilizam apenas questões por onde possa transitar. Viver ainda. Tenho cada vez menos interesses, menos coisas a dizer. Não sou um intelectual. Não tenho opiniões (dignas de serem ditas em público). Meu interesse é mais sugerir do que analisar em detalhes, compor diálogos e constelações abertas na esperança de que possa tocar, mobilizar alguém. Por ora, neste trabalho, procurei esta experiência sobretudo no espaço intermediário e frágil de filmes de ficção em grande parte a partir dos anos 90. Como disse, transitei por filmes que vem do Extremo Oriente, do Leste Europeu, do norte da França, da África subsaareana, do norte da Argentina. Fora do conceito de cultura nacional, procurei acolher o homem comum em várias paisagens transculturais. Mas não apenas no feerismo das grandes cidades, ou se nas grandes cidades, entender o lugar, o pequeno espaço de nós, pessoas comuns, sem grandes dramas nem grandes gestos, em meio a uma cultura das celebridades instantâneas que demanda o máximo de visibilidade e de exposição. Este pequeno espaço, que pode ser o que antes chamávamos de província, de bairro, da pequenas cidade, de comunidade tem que ser repensada a partir das mesmas variáveis que com que pensamos a experiência metropolitana ocupada por intelectuais, artistas, boêmios, celebridades e pretendentes a celebridades (estes, claro, sempre mais, infinitamente mais numerosos). Não busco palavras mas experiências que primeiro encontrei no Jia Zhang-ke de “Pickpocket” e Unknown Pleasures, Não são simplesmente pobres, ainda que não sejam os que se beneficiaram da grande transformação econômica na China, não tem o charme dos marginais, nem o discurso articulado de intelectuais; eles carregam os seus corpos pelo dia a dia, marcado por pequenos trabalhos que podem estar no frágil liminar entre a lei e o crime, mas não é da norma e da transgressão que se está tratando. Na ausência de grandes utopias e projetos, poderíamos pensar em palavras grandiloqüentes como alienação, os homens ocos de T. S. Elliot. Mas a ausência de utopias e grandes projetos não é vivida como perda, luto, nostalgia, a questão é mais simples, por um lado claro, sobreviver, por outro simplesmente viver. Bem sei isto pode ser abstrato, espero que as narrativas reencenadas neste livro possam dar mais sentido do que o que disse até agora. Talvez não. É o que pude fazer. Não brasileiro nem cosmopolita. Apenas no coração do mundo. Um. Apenas um termo. O mundo naufragar no coração. Retirado do corpo. Jogado aos cães no frio mais frio.
Denilson Lopes graduação em Comunicação Jornalismo (1989), mestrado em Literatura (1992) e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1997), é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq e autor de A delicadeza: estética, experiência e paisagens (2007), O homem que amava rapazes e outros ensaios (2002) e Nós os mortos: melancolia e neo-barroco (1999). Bolsista de produtividade científica do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), foi pesquisador visitante na City University of New York, na New York University e na Univ. de Montreal. Também ocupou a Cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros na Univ. de Leiden na Holanda. No momento, desenvolve a pesquisa Encenações do Comum, num diálogo entre cinema, teatro e artes visuais.