No fio das palavras
Um sopro insular atlântico percorre a planície alentejana, a Europa-outra: afectos e fascínios, ausências, distâncias. Magia do poeta e da sua palavra. Não vi melhor para transmitir o que senti e sinto ao (re)ler No fio das palavras, de Artur Goulart. E quem o diz é Urbano Bettencourt, poeta do Pico, em abraço do tempo ao Amigo e Mestre, de São Jorge.
No fio das palavras é um dos melhores livros de poesia que li em toda a minha vida, porque na palavra vejo o cais onde posso amarrar o barco da minha angústia e sinto ainda a pessoa do seu autor e a grande influência que teve em mim, nos quase seis anos (1962-1968) em que o tive como Professor, no Seminário de Angra.
Artur Goulart não escondia a sensibilidade de poeta e artista. Apenas a embrulhava numa onda de simplicidade e cumplicidade que a todos nos cativava e sugestionava. As suas aulas, serenas, metódicas e profundas pareciam sempre curtas, porque sabia cativar e tudo fazia para ser diferente e inovador. Não se contentava com a palavra e o manual. Fazia-nos ouvir em gravador, fazia-nos ver em diapositivos, aquilo que queria exprimir. No fio da palavra é o melhor título de um livro para quem teve sempre como fio condutor da sua vida a autenticidade e a sinceridade.
Frederico Maciel, meu colega de curso, jorgense de gema, a quem a ilha e os Açores muito devem na divulgação histórica e cultural, foi quem, num abraço mandado para Alcoitão onde eu estava no meu longo internamento de quase dois anos, me falou deste No fio das palavras. E foi ele também que, numa passagem por São Miguel, fez questão de me deixar o livro que foi apresentado em São Jorge, em Novembro de 2010, por altura de uma justa homenagem da autarquia velense que distinguiu o autor com a medalha de mérito municipal.
Curioso é notar que este livro retoma o nome de uma colectânea de poemas de Artur Goulart, em 1999, apenas para um grupo restrito de amigos. E é um grupo de Amigos, liderados por outro antigo aluno do Seminário de Angra, Olegário Paz, que toma a iniciativa da publicação do livro, quase sem participação do Autor, numa edição da Santa Casa da Misericórdia das Velas e impressão na Nova Gráfica, em Ponta Delgada.
Pode parecer que devido a muitos anos de ausência dos Açores, Artur Goulart esteja menos presente nas ilhas ou que as ilhas estejam menos presentes nele. Puro engano. A ilha é um fio cortante na sua personalidade e escrita.
Esta ânsia que me prende /só tem sossego no mar…/É como a vaga dolente/ sempre na rocha a quebrar.
Nascido na Vila das Velas, de São Jorge, em 1937, Artur Goulart de Melo Borges que é, em regime de voluntariado, Coordenador do Inventário do Património Cultural Móvel da Arquidiocese de Évora, é licenciado em arqueologia pelo Pontificio Instituto di Archeologia Cristiana. Fez Pós-graduação em Museologia e História da Arte, e é também formado em Teologia e Estudos Árabes. Técnico superior do Museu de Évora entre 1979 a 1992, desempenhou funções de director entre 1992 a 1999.
Sigo Olegário Paz para referir mais alguns aspectos da vida do autor deste No fio das palavras: Em Angra do Heroísmo, leccionou História da Arte e Liturgia no Seminário Episcopal de 1962 a 1978 e chefiou a equipa redactorial do Jornal A União, entre 1968 e 1973. Integrado no ambiente cultural que o rodeava, Artur Goulart acompanhou e participou em várias das diversas manifestações culturais que marcaram o terceiro quartel do século passado nos Açores, tais como “Pensamento”, suplemento quinzenal do jornal A União (1953-1956), o Instituto Açoriano de Cultura com a revista Atlântida (1956) que continua a publicar-se, a Gávea – Revista Açoriana de Arte (1958) e a Galeria Gávea (1959), as Semanas de Estudo (1961-1966), tendo feito parte da Comissão de Organização da II juntamente com José Enes, Emanuel Félix, Weber Machado Pereira e Trindade Armelim (1963), “Glacial” – a união das letras e das artes”, suplemento do jornal a União (1967-1973), dirigido e organizado por Carlos Faria.
Ainda estudante do Seminário de Angra publicou os primeiros poemas na página cultural “Pensamento” referida anteriormente. A partir de 1958 passa a escrever poesia com mais regularidade, produção que vai ficando quase toda ‘guardada na gaveta’. Quase toda, porque concorreu e ganhou, com o poema “Ilhéu”, o 2º prémio – o 1º foi atribuído a Eduíno de Jesus – dos Jogos Florais da Cidade (Angra, 1959), publicou “Hei-de fazer da minha angústia um barco” na página “Artes e Letras” do Diário Insular (Abril de 1968) e viu “Ilhéu emigrante”, que tinha publicado em Glacial, exposto por Álamo Oliveira, em “20 desenhos para 20 poemas” (Angra, 1973). Além destes, houve quem conseguisse ‘roubar-lhe’ e publicar outros poemas, mormente em antologias, casos de “Terra-mater dolorosa”, “Quadras da vida e do mar”, “Carta com post-scriptum”, “Como um rio”, “Ilha revisitada”.
Isto é apenas um pouco de Artur Goulart, nas palavras de Olegário Paz.
No Fio das palavras escorre a doçura da ausência mas também a mágoa de muitas presenças. Tocou-me de forma muito espacial a balada Baloiço triste, vazio, sem ninguém a baloiçar… que lembra um pássaro perdido sem asas para voar, um barco velho, partido, que não pode navegar. E a presença da ilha: É como um corpo sem alma, como uma ilha sem mar, Baloiço, triste, vazio, sem ninguém a baloiçar.
Nestas Leituras do Atlântico não há espaço para transcrever poemas, mas como gostaria que aqui coubesse o soneto Angra: Nesta angra da memória te revejo/ Memória dessa Angra que revivo/ cidade atormentada dor desejo/ volúpia de morrer livre e cativo.
Assim mesmo, nesta grandiosidade de pensamento que Artur Goulart sabe criar. Como me lembro, eu nos meus 13 ou 14 anos, do êxtase com que o ouvia, no velho piano da sala de aula número dez, interpretar, com dedos que para mim voavam no teclado, a Für Elise, de Beethoven. E agora quedo-me a ler que versos são pedaços d’alma / atirados do mundo dos vulcões / terra ferida em dor / feita poema e sofrimento /e lavas / palavras marcadas a ferro e fogo / para viver. Se calhar porque, como diz Santos Barros, “fazer versos dói”.
Quando leio e releio este No fio das Palavras sinto que o presente não é só hoje. Quase volto a ser menino, como se o passado me doesse nas pequenas mágoas que então me pareciam vagas enormes. E fico cismando, num abraço ao meu Mestre, Artur Goulart, que A vida que tens vivido/ passou-se. Não volta mais…/Ficou um peixe esquecido sobre as escadas do cais./ Maré baixa, maré alta,/ Divertimento do mar. /Como na vida faz falta /um barquinho de brincar!
Santos Narciso
O Jornalista Santos Narciso, Diretor-Adjunto do Correio dos Açores,com grande sensibilidade e sabedoria,assina Leitura Atlânticas, no Atlântico Expresso, de Ponta Delgada,Ilha de São Miguel.