No fundo, açoriano com certeza
Estamos às vésperas de mais uma eleição.No contexto político,vive-se em função de candidaturas,coligações impensáveis,articulações partidárias e independentes, campanhas,conchavos,acertos com inhapas de toda sorte. É um escambau sem fim, onde tudo vale e quase tudo é permitido.
De acordo com o artigo 47,da Lei nº9504/97, que estabelece as normas eleitorais vigentes e que é alterada a cada nova eleição,começou a Propaganda Eleitoral Gratuita no Rádio e Televisão em 5565 municípios do Brasil.Nos próximos quarenta e cinco dias estão reservados horários destinados à divulgação em rede da propaganda eleitoral gratuita.Os candidatos a Prefeito Municipal e os 326 postulantes às 23 cadeiras da Câmara Municipal têm a oportunidade de mostrarem o seu perfil, a “ficha limpa” e a plataforma política. Assim, até outubro, no almoço e no jantar, nossa casa será invadida pela propaganda eleitoral.Não adianta chiar.Ou você assiste o desfile de carinhas acompanhadas de seu BI eleitoral,o “nome de guerra”,tais como:“Oi eu sou Pezinho, pezinho neles”,“Vote no Funchinho”,“no Giovani da lavação”,“no Nivaldo motoqueiro”, no“Arnalto Pereba”,“Olá,sou a Lu do Bem”,“Oi, sou a cabelereira Marli
da chapinha”,“Vote na experiência,vote na vovó Laura”e outros tantos apodos da diversidade humana.Ou você aperta no botão do controle remoto da TV e desliga. Pronto. Afinal, só o voto é obrigatório para os 323 mil eleitores cadastrados na açorianíssima Florianópolis, cidade capital com 97% do seu território situado na Ilha de Santa Catarina.
Bem, a minha intenção não é escrever sobre os alcunhas e artifícios usados para emplacar o nome e conquistar o eleitor. Embora um atributo em particular está me surpreendendo nesta campanha eleitoral – a super valorização do status “açoriano”e a aura de credibilidade subjacente,tal é a quantidade de candidatos que enfatizam a sua origem vincada nos Açores e se manifestam na ampla defesa da cultura açoriana e que, se eleitos, vão lutar pela preservação dessa herança e pela difusão das expressões culturais nativas, mundividências de uma açorianidade sobrevivente.
Se o sangue açoriano diluiu, no passar de quase 265 anos, ao se misturar a outras etnias, espelho da multiculturalidade,os laços identitários estão mais fortalecidos no sentir e viver nossas raízes. Estão mais vivos do que nunca! Tanto é que os principais candidatos a Prefeito de Florianópolis se apresentam como “açorianos de origem”, regressando à sua ancestralidade garimpada na memória familiar ou no estabelecimento de uma política cultural de aproximação entre a Ilha de Santa Catarina e o Arquipélago dos Açores, bastante incentivada nas últimas décadas.
Isto faz lembrar das inúmeras citações sobre o vínculo ancestral açoriano de determinadas personalidades brasileiras tanto no passado, quanto na atualidade. Algumas,claro, fantasiosas e passíveis de comprovação.
No caso de Santa Catarina,o maior exemplo vem da família Ramos, berço de ilustres catarinenses, que tem as suas raízes na Ilha Terceira.O casal Matheus José Coelho e Maria Antônia de Jesus, naturais de Angra, estavam nas primeiras levas que emigraram no século XVIII.Foram assentados na freguesia de São Miguel da Terra Firme (hoje,Biguaçu)e aí nasceram os filhos:Ricardo José (1776), Laureano José (1777) e Adolfo José (1779).O tronco da família foi Laureano José Ramos nascido a 18 de março de 1877, num domingo de Ramos.Seus pais,cristãos novos,substituíram o patronímico Coelho por Ramos, conforme certidão emitida em 1805 pela paróquia de São Francisco do Sul.Laureano José Ramos,em 1804, casou-se no Paraná com Maria Gertrudes de Moura, filha de Manuel de Moura Cardoso e de Maria Gertrudes Moura de Barros, açorianos de origem. O casal se estabeleceu na Coxilha Rica, Lages,Santa Catarina.Tiveram nove filhos e uma enorme descendência.
O neto de Laureano José,Vidal José de Oliveira Ramos Júnior,foi Deputado Provincial aos 20 anos, Deputado Estadual e Federal por várias legislaturas, Governador do Estado (1910-1914) e Senador por Santa Catarina (1915-1929). Do matrimônio com Thereza Fiuza de Carvalho nasceram catorze filhos.Da numerosa família,os filhos Nereu e Celso e o neto Aderbal tiveram atuação destacada no cenário político nacional como Deputados,Senadores e Governadores do Estado.Nereu de Oliveira Ramos,o estadista,foi presidente do Senado Federal,Vice-Presidente da República e o único catarinense Presidente do Brasil,entre 1955 e 1956, em conturbado momento da vida do País,logo após o suicídio de Getúlio Vargas (origem açoriana do Faial).Por quase dois séculos,os Ramos exerceram forte liderança política constituindo uma verdadeira oligarquia,onde a palavra empenhada, proferida no discurso político ou no dia a dia do homem público tinha a força de lei e valia“o fio da barba”.
O poder não esmoreceu e continua fortalecido na palavra escrita, livre, corajosa e criativa de uma nova geração de tetranetos de Laureano José Ramos,presente no jornalismo e na literatura.
Neste universo,Sérgio da Costa Ramos,filho do jornalista Rubens de Arruda Ramos, é touchstone ou a pedra de toque.
Sérgio nasceu em Florianópolis.Advogado, jornalista, escritor e ilhéu.A sua fértil produção literária compreende as crônicas publicadas na coluna do Diário Catarinense e seus inúmeros livros,destacando-se: Sorrisos Meio Sacanas(1996),O Plano Surreal(1999),Rapsódias do Mundo Bin – Ou não confia nem no carteiro (2001), Costela de Adão – De um fiel às mulheres e a boa mesa (2007), Duas Violas Arteiras (2009, com Flávio Cardozo) e Piloto de Bernunça (2009) comprobatória da sua escrita lídima, de uma prosa deliciosa e inigualável.
A crônica é a sua praia. A par da elegância e da força do estilo, seu texto transpira esperança e confiança,mesmo quando nada parece estancar a sangria da corrupção,a falta de planejamento urbano, o caos na saúde pública, as mazelas sociais que o discurso político laudatório esconde no tapete da improbidade.Faz bramir sua pena e a palavra flui poderosa, contundente, incisiva, intolerante e crítica frente a situações de desrespeito ao bem comum, incompatíveis com a dignidade pública. Se sua prosa, ora se apresenta dura, plena de ironia sutil, ora é de uma leveza poética ao alongar seu olhar apaixonado a falar da Ilha ou do inebriante sol poente, como se fosse um pintor e as palavras as tintas derramadas na alva tela. Não é sem razão que de longe é considerado o mais festejado cronista da Ilha.Escreve crônicas apaixonantes, cheias de sabor,refinadas,líricas,narradas com a irreverência típica do ilhéu.Esbanja cromatismo e luminosidade sobre a cidade-ilha ao cantar suas belezas com aquele olhar cativo dos que a tiveram por berço.Uma prosa que encanta exatamente pela descoberta, pela magia do (re)encontro, pelo gosto de atiçar, de mexer com o imaginário e sacudir a memória coletiva.
Sua escrita há muito deixou de ser regional, navega livre por outros mares, seja por este continente Brasil, seja no além-mar por terras de Portugal.No ensaio O Atlântico entre dois açorianos Sérgio aponta confluências das marés na “alma que sentimos, no corpo que herdamos” de Vitorino Nemésio em Mau Tempo no Canal e na prosa rica e simples de Othon D `Eça em Vindita Braba e Homens e Algas: “É notável a utilização, pelos dois autores,da carpintaria lingüística açoriana,em que se sucedem as elipses silábicas,as contrações de vogais,os metaplasmos de supressão e uma dança sintática que forjaria uma espécie de “açorianidade” derramad
a como lava na conversação dos nativos do arquipélago,e,na margem de cá,tagarelado pelos nossos Manezinhos do Ribeirão da Ilha, de Santo Antônio de Lisboa, ou do Canto da Lagoa da Conceição,”
Não tenho dúvida em afirmar que Sérgio da Costa Ramos honra o legado dos seus ancestrais terceirenses Maria Antónia de Jesus e Matheus José Coelho, seu quinto avô. Sua escrita transborda Açores,mesmo sem nunca ter estado lá. Escreve com alegria festeira do sotaque da Terceira.
No fundo,é açoriano com certeza.
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originalmente publicado no Jornal Açoriano Oriental na coluna Pedra de Toque.
http://www.acorianooriental.pt/ver/edicao/2699