Para os que ainda não se deram conta disso, é preciso que se diga: Flávio José Cardozo é um sobrevivente. Ele mesmo o confessa neste livro, apoiado na página 381 da respeitável obra Colonos e mineiros no grande Orleans, do padre João Leonir Dall’Alba. E o leitor, sempre curioso, se quiser saber desde já as razões dessa sobrevivência, que salte este desnecessário texto introdutório e vá logo para as páginas iniciais de Sopé e procure o título que anuncia abertamente o fato. Por ora, basta dizer que Flávio José Cardozo é um sobrevivente porque, na infância, viveu um bom tempo no Guatá.
Lembro que, lá pelos idos de 1989, realizei uma entrevista com o Flávio para o primeiro número de uma série de fascículos da Fundação Catarinense de Cultura sobre escritores de Santa Catarina. Pois nesse primeiro fascículo da série Flávio já tecia lembranças daquela vila de mineração carbonífera a cinco quilômetros de Lauro Müller. Dizia ele:
O Guatá não era, de fato, o que se pode chamar de um lugar bonito. Abafado numa depressão do terreno, cercado de escavações e montanhas de rejeito, compunha-se dum casario de madeira que o tempo foi enegrecendo e roendo sem piedade. Muitas, muitas casinhas uniformizadas de propriedade da Companhia (mineradora), dispostas em arruamentos e caminhos irregulares que fritavam os pés da gente na força do verão e que, em dias de chuva, se transformavam em lamaçais escuros que os operários venciam com seus sapatões de couro cru, as mulheres transpunham vagarosamente e sofridamente e que nós, a gurizada, a caminho da escola ou simplesmente no brinquedo, domávamos com valentia e grande prazer.
A natureza ali era uma infeliz sem esperança, a vegetação tentava manter-se verde mas a pirita, como um cancro, avançava sempre. A água saía dos canos de ferro com um gosto de mineral venenoso. Agora, sobre nós e em volta de nós, havia coisas bonitas: um céu translúcido como jamais pude ver tão claro e estrelado em qualquer outro lugar; a Serra ali perto, muralha enorme, misteriosa, azulada, em cima da qual eu sabia que existiam povoados e cidades inatingíveis, campos e casas que no inverno, dizia-se, se cobriam de branco; os vastos eucalipteiros dos quais a Companhia extraía os dormentes dos trilhos e as estacas de sustentação das galerias. E o povo alegre, alegre a seu modo, gostava de jogos, bailes, festas de igreja, não vivia se lamentando da sorte como é tão comum de se ver em ambientes melhores.
Foi a esse cenário da infância que mais tarde, bem mais tarde, depois de mostrar toda uma saga do povinho miúdo e praieiro da Ilha de Santa Catarina em livros como Singradura, Zélica e outros, Longínquas baleias, o escritor Flávio José Cardozo decidiu retornar, primeiro numa série de contos densos e humanos que podem ser lidos como um romance, o romance do Guatá, e agora este Sopé, que o leitor tem em mãos.
Sopé me parece o sopé “da Serra ali perto” mencionado por Flávio no trecho da entrevista citada, a Serra do Rio do Rastro. Mas Sopé, eu diria, é a versão mais suave e amena de Guatá. Se excluirmos os contos “Duelo ao sol” e “Asas”, que procedem de Guatá e, de certo modo, equilibram o lado light da obra, o que vemos em Sopé é uma visão lírica e mágica que todo menino deve (ou deveria) ter da sua infância, mesmo quando cercada pela aspereza do ambiente e por eventuais sofrimentos. São crônicas de recordação, lembranças vindas do coração.
Algum problema? Depende de como as crônicas são escritas. E aí reside toda a diferença. Leio mil crônicas em jornais, bem poucas me fazem a cabeça. Em Flávio José Cardozo vejo algo sedimentado na vida, na experiência, num registro diverso do padrão ordinário. As crônicas deste livro crescem diante de nossos olhos com a força da boa ficção, mesmo que trate de paisagens e personagens reais. E é a aparência ficcional estruturada pela linguagem que nos faz participar emocionalmente dos acontecimentos da infância do autor, povoada de figuras marcantes para o garoto, como o tio Souvenir, a professora primária Dona Húngria Avandrília de Queluz Cienfuentes, os valentões da terra, a bandinha da festa do Senhor do Bonfim com o contrabaixo de Mané Brasil, o barbeiro Antônio Baldino e sua conversa erudita fundamentada nos artigos do cronista internacional da revista “O Cruzeiro”, Drew Pearson (que ele pronunciava assim como se escreve), e episódios ternos e fascinantes como a musiquinha metálica da máquina Singer da mãe costureira, a busca do capim às vésperas do Natal, o especial 15 de Novembro de Dona Isaura, o tiroteio da gurizada depois do filme e outros mais.
Literatura é linguagem e nisso as crônicas de Flávio tiram de letra. Para quem já leu algum de seus livros, são verdadeiras as palavras de Lauro Junkes, um expert catarinense de literatura e linguagem: “A linguagem é algo que não pode ser olvidado na narrativa de Flávio José Cardozo. Seguindo sempre o padrão correto da gramaticidade, sua linguagem não deixa de estar ao mesmo tempo próxima da popularidade, pelo seu leve e ágil fluir oral. Nesse sentido, a passagem da narração direta para o monólogo interior se dá com tanta naturalidade que se torna quase imperceptível”.
É isso aí.
Mas este livro, Sopé, se o olharmos como edição, se enriquece também com os desenhos magníficos de Tércio da Gama. É provável que Tércio tenha um dia passado pelo Guatá, em suas andanças por Santa Catarina como auditor fiscal federal num tempo que de há muito se foi. Seja isso verdade ou não, o que não se pode negar é que Guatá se ergue neste livro, real, convincente, recriado em seus aspectos mais impressivos e comoventes, acompanhando cada texto de Flávio. Essa coisa meio bruxólica e muito estranha da arte.
Mesmo para nós, que acompanhamos a bem dizer desde o início a obra do Tércio da Gama pintor, com as cores exuberantes, quase agressivas, de suas telas, que transfiguram as paisagens e fatos da Ilha de Santa Catarina criando um universo mágico e primordial, mesmo para nós o Tércio desenhista só começou a despontar com um poder maior em trabalhos recentes, como, por exemplo, os do livro 13 Cascaes, editado pela Fundação Franklin Cascaes em 2008, que ilustram uma série de contos de autores catarinenses. Mas é bom dizer: se esses trabalhos se apresentam como ilustrações de textos, eles se afirmam também como obra de arte independente, entre as melhores do gênero em Santa Catarina e no Brasil. O leitor pode constatar essa verdade simplesmente admirando, neste Sopé, os desenhos altamente sugestivos, tecidos no claro-escuro da vida e do carvão, que ilustram visualmente textos como “Sobrevivente”, “Primeira música”, “A busca do capim”, “Máscaras”, “Subir a Serra” e “Asas”, para citar somente alguns. Aqui, o Tércio desenhista se equipara ao já consagrado pintor.
De parabéns, portanto, a Editora Unisul, ao reunir nesta edição primorosa, dois dos nomes entre os mais importantes da literatura e da arte em Santa Catarina.
Créditos:
1-Foto Silveira de Souza – cedida pelo escritor;
2. Fotos e Ilustração da contracapa do livro Sopé : Danísio Silva e Tércio da Gama
Nota Biobliográfica: João Paulo Silveira de Souza,nasceu em em Florianópolis,na Ilha de Santa Catarina. Ficcionista de reconhecida presença na literatura catarinense.Poeta,contista,cronista ilhéu. Tem publicado entre muitos outros,os seguintes livros:Rumor de Folhas (poesia),Relatos Escolhidos,(contos);Janelas de Varrer (minicontos) e T
rololó para Flauta e Cavaquinho, (crônicas)com Flavio José Cardozo.