NO TEMPO DO GIRASSOL
Eduino de Jesus
Muitos dos autores que povoam com mais ou menos destaque o mundo das Letras açorianas deram os primeiros passos literários em jornais e revistas feitos por alunos do nosso Liceu desde 1890. Os historiadores da literatura dos Açores, se se dispuserem um dia a folhear essas publicações, irão certamente descobrir nas suas páginas as primeiras poesias, contos, crónicas, artigos e outra diversa literatura de autores que vieram a ter nome nas Letras açorianas, uns tantos que não ou mal deixaram rasto, mas também um ou outro, de mor talento ou mais afortunados, que até alcançaram projecção nacional. São exemplos de uns e outros Osório Goulart, Félix Horta, Armando Côrtes-Rodrigues, Armando Raposo de Oliveira, Armando Narciso, João H. Anglin, Duarte de Viveiros, Armando Monteiro, Frederico Lopes, Oliveira San-Bento, Guilherme de Morais, Manuel Carreiro, H. Albuquerque de Bettencourt, Manuel Barbosa, Vasconcelos César, Virgílio de Oliveira, Diogo Ivens, Carreiro da Costa, Manuel Ferreira, Armando Rocha, Carlos Wallenstein, Ângelo Raposo Marques, Dinis Decq-Mota (citando eu, por ora, e sem preocupações selectivas, apenas alguns dentre os já desaparecidos).
Quando entrei para o Liceu, em Outubro de 1939, não existia lá nenhum desses jornais de estudantes. O último tinha sido publicado no ano lectivo de 1935-36 (doze números); estava, portanto, extinto havia quatro anos. Contudo, a sua fama perdurava. Intitulara-se Arco-Íris. Fora seu redactor principal o futuro jornalista e escritor Manuel Ferreira, um dos mais notáveis contistas açorianos do século XX, que ali publicara artigos sobre João de Deus, Antero de Quental, Teófilo Braga, etc., e, pelo menos, um conto, A Matança do Minhoca, em que já são reconhecíveis traços do seu tão característico estilo camiliano. Em versão muito aumentada, esse conto pode ser lido hoje em qualquer das várias edições do livro O Barco e o Sonho.
Houve depois um outro Arco-Íris, saído no ano lectivo de 1949-50 (dez números), tinha eu já acabado o liceu e andava no castelo de correias às costas a servir o Rei. O primeiro director (nos números 1 a 5) foi outro grande contista, Ruy-Guilherme de Morais, que viria a escrever mais tarde o conto Terras da Santa, um clássico da geração literária açoriana da transição do meio século XX, que não sei se tem sido devidamente lido pela juventude letrada de hoje…
Foi entre estes dois Arco-Íris que se publicou o jornal de estudantes do meu tempo do liceu, o Girassol. Editaram-se 60 números, de 1940 a 44, o primeiro no dia 1 de Dezembro, três séculos, dia por dia, depois da Revolução do 1º de Dezembro de 1640, e o último em 7 de Junho de 1944, um dia depois do desembarque dos Aliados na Normandia. Durou, portanto, quatro anos, desde um ano depois do começo da 2ª Guerra Mundial até a um ano antes do fim.
Para mim, esse tempo foi dos meus 12 aos 15 anos, ou seja, do 2º Ano do liceu ao 5º. Era muito tempo naquele tempo. No seu decurso, mudava-se de idade e os rapazes também de voz e de indumentária: A certa altura, começávamos a falar “grosso” e deixávamos de trajar calças curtas, acima dos joelhos, como crianças, e passávamos a usá-las compridas, como os homens. Nos estudos, transitava-se do 1º para o 2º Ciclo, e no recreio (isto no nosso Liceu), os rapazes passavam do pátio dos “miúdos” para o dos “grandes”. Enfim, amadurecia-se a personalidade.
Foi ainda esse o tempo da génese e consolidação da minha primeira e inesquecível tertúlia literária. Entrei para ela a convite de um dos seus membros, o Fernando de Lima, que fundamentou a proposta no facto de eu escrever romances (sic). Os outros eram o Jacinto Soares de Albergaria e o Fernando Aires, que também andavam a escrever romances, cada um o seu, e o Eduardo Bettencourt de Ávila, que não escrevia romances mas sabia tocar piano. O Eduardo Vasconcelos Moniz também era membro ou havia de ser em breve; desenhava muito bem e veio mais tarde a ilustrar um nosso jornal de parede chamado Mensário do 7º Ano de Letras (1945-46), que alguns professores liam, en passant. Então já éramos recentemente o Círculo Literário de Antero de Quental.
Mas voltemos ao tempo do Girassol. Nessa fase, nós ainda sofríamos do romantismo congénito que as leituras dos grandes românticos (e até de alguns pequenos) tinham exacerbado. Os nossos romances reflectiam esse romantismo. Dos meus, ilustrados por mim mesmo, conservo quatro ou cinco, completos, mas dos que andavam a escrever o Fernando Aires e o Jacinto apenas ficou a lembrança dos títulos: respectivamente, As Ruínas de Valladolid e Cavaleiro e Monge (nada a ver, este, nem com o Guerreiro e Monge, do romancista terceirense Campos Júnior, nem tão-pouco, ou só um bocadinho, com o Eurico, de Herculano). Estes títulos fazem prever o teor romântico das intrigas, o do Fernando Aires com alguma coisa, porventura, do romance gótico, com escombros, fantasmas pedindo contas aos vivos, clamando vingança, raptos, punhais ocultos sob hábitos de falsos monges, enforcamentos ao luar, coisas assim. Reuníamo-nos para ler uns aos outros as passagens mais idílicas ou mais arrebatadoras dos nossos romances ou para comentar as nossas leituras, trocados que tinham sido os Salgari e mesmo os Júlio Verne pelos nossos Garrett e Herculano, e outros de fora, como o Goethe do Werther, o Bernardin de Saint Pierre do Paulo e Virgínia, e o Musset, o Walter Scott, sei lá! Eu esforçava-me por ler os franceses no original. Tenho desse tempo as Nouvelles méditations poétiques de Lamartine com anotações minhas, a lápis.
O Girassol foi o jornal de estudantes do Liceu desse tempo. Não sei se o Jacinto ou o Fernando Aires chegaram a publicar nele alguma coisa. O Fernando de Lima sei que sim, um artigo sobre Camilo Castelo Branco, em 1943, e eu próprio um soneto e um conto, assinados com pseudónimo, mas não sei dizer o ano ao certo nem do que tratavam. De qualquer forma, éramos demasiado novos nesse tempo: Ainda não tinha chegado a nossa vez….
O jornal, como digo, era apenas um “jornal de estudantes”; contudo, mais de meio século após extinto, veio a merecer entrada no Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, 2ª edição, Lisboa, Grifo, 1999, de Daniel Pires*. Quem, a tal distância, o suspeitaria? (Quanta água ainda havia de correr sob as pontes das nossas vidas e sonhos!)
O facto é que as Letras também tiveram lugar nesse jornal de rapazes, e até, em certas circunstâncias, um lugar de relevo. Tal, por exemplo, o caso das celebrações dos centenários de Antero de Quental em 1942 e de Teófilo Braga em 1943. Além disso, as suas páginas também foram enriquecidas com a colaboração de alguns professores que tinham nome no meio literário micaelense e até, um deles, com ressonância nos meios literários do Continente. Este era o poeta Armando Côrtes-Rodrigues, da constelação Fernando Pessoa, que participou na introdução do Modernismo na poesia portuguesa em 1915. No tempo do Girassol publicou um dos seus melhores livros de poesia, os Cantares da Noite (1942), em que juntara as poesias publicadas nas revistas modernistas Orpheu (1915) e Exílio (1916). Não fui seu aluno, mas um dia nos havíamos de tornar grandes amigos.
Outros professores que também colaboraram no Girassol e assim terão contribuído para o seu estatuto de revista literária foram Espínola de Mendonça, o nosso Paul Giraldy, ameno “poeta do lar”, e o reputado anterianista, e também poeta, Ruy Galvão de Carvalho, além de alguns mais, de menor relevo literário, mas não de menos prestígio intelectual, como João H. Anglin, ao tempo nosso Reitor, e Agnelo Casimiro. De todos estes fui aluno e de Ruy Galvão de Carvalho amigo pelo resto da vida.
Mas o que deu estatuto lit
erário ao Girassol não foi, porém, só a colaboração destes professores. De facto, pelas suas páginas também passaram uns tantos jovens a quem, naquele tempo, futurávamos um lugar na Literatura. Por exemplo, Fernando Reis, José da Costa Garcez Pavão, Albano Dias, Ângelo Raposo Marques, Carlos Wallenstein, Dinis Decq-Mota. Hoje sabemos que, depois do liceu, nem todos encarreiraram na Literatura. Mas era já como gente de Letras, e até mesmo com alguma admiração, que os olhávamos naquele tempo. Todos mais velhos do que os da nossa tertúlia. Não muito, mas o suficiente para que lhes passássemos despercebidos. Foi excepção o Dinis, por se ter deixado atrasar um pouco nos estudos. De facto, acabámos ao mesmo tempo finalistas no Curso Complementar de Letras de 1945/46. E ficámos amigos desde aí, se bem que, acabado o liceu, raro nos tivéssemos cruzado na vida. Ele tinha sido, contudo, um dos poetas mais assíduos no Girassol e mais apreciados. Após o liceu, não veio a distinguir-se nas Letras como tínhamos prognosticado. Apenas, depois de um silêncio de anos, chegou a editar três ou quatro colectâneas de versos, em que, sentindo-se “só, num mundo agreste”, se pusera a desfiar em verso as contas do seu rosário de amarguras. Mas a História não deu por isso.
Dos outros, aqueles que, a bem dizer, deixaram rasto na Cultura açoriana foram apenas o Ângelo Raposo Marques e o Carlos Wallenstein, e este, o único que atingiu nível nacional na Literatura, como poeta, contista e escritor dramático, e no Teatro, como autor e actor.
O conto que publiquei no Girassol proporcionou-me um encontro com o Ângelo Raposo Marques, quando ainda éramos os dois estudantes do liceu. Foi a única vez que falámos, nesse tempo. Depois ainda o fui apanhar em Coimbra, ele no ano da tese, já casado e pai de um filho; eu, caloiro. Então recebeu-me algumas vezes em sua casa a passar serão, a mim e ao Jacinto Soares de Albergaria. Uma vez formado, ingressou no ensino, que exerceu no nosso Liceu. Voltaríamos ainda a encontrar-nos uma ou duas vezes em Lisboa, ele já com a morte precoce anunciada, residindo temporariamente em Queluz, se não estou em erro.
No nosso tempo do liceu só falámos, que me lembre, essa vez, no encontro a que me referi acima. Eu devia andar pelos catorze anos ou menos. Tinha ousado publicar no Girassol um soneto, primeiro, e, depois, um conto, assinados com o mesmo pseudónimo, como disse. Naquele tempo eu era um sujeitinho extremamente tímido e estarrecia ante a ideia de me tornar célebre se me vissem estampado num jornal com o meu verdadeiro nome. O Raposo Marques, porém, teve artes de me desvendar o anonimato e mandou-me recado para um encontro. Compareci meio encabulado, gaguejando desculpas do meu atrevimento; mas ele, que tinha fama de sobranceiro e arrogante, não se mostrou assim comigo. Pelo contrário, contra o que eu esperava e temia, tratou-me com afabilidade, felicitando-me até com exagero, embora sem deixar de, como mais velho e experiente que era, fazer um ou outro reparo (justíssimos, reconheci) ao meu estilo demasiado literário e artificioso.
Morreria jovem, em 1957, com 32 anos apenas, como Soares de Passos, Júlio Dinis, Cesário, Nobre; não, porém, como esses, de tuberculose (que era do que morriam os poetas), mas do coração. No tempo do Girassol ele era poeta, mas, além de versos, também escrevia artigos e não sei se contos. O mais importante, acho eu, deviam ser, já nessa altura, os artigos. Teriam maturidade, revelariam capacidade de reflexão, prenunciariam, decerto, o ensaísta que ele ia ser em breve. Isto é o que infiro da fama que aureolava a sua pessoa no meio escolar; na verdade, do que me lembro mais (e mesmo assim só vagamente) é da impressão que me deixava a sua poesia, composta segundo o estereótipo ultra-romântico, nocturna, pessimista, sentimentalíssima, mas em que já repercutiam acordes mais ou menos filosóficos, na clave anteriana. Mais tarde, o poeta viria a despedir as musas ao voltar-se definitivamente para o ensaio. Neste género deixou-nos trabalhos valiosos, a maior parte no âmbito da Filosofia e vários deles sobre Antero de Quental. Entre estes conta-se O Socialismo de Antero, sua tese de licenciatura, publicado já postumamente em 1959, com prefácio de Ruy Galvão de Carvalho e a chancela da “Colecção Arquipélago”, que o Jacinto e eu tínhamos fundado em Coimbra e continuávamos dirigindo.
Ao contrário do Ângelo, que foi simplesmente colaborador do Girassol, o Carlos Wallenstein teve ali o cargo de redactor-gerente, que eu não sei bem o que seria. Isso durante todo o segundo ano do jornal, de Dezembro de 1941 a Dezembro de 1942. Não me lembro do que ele publicou ali, mas apenas de ver o seu nome impresso por extenso – Carlos Wallenstein dos Santos Teixeira – sob a designação do cargo. E lembro-me, porque aquele apelido “Wallenstein”, ao meu ouvido, regia com a pessoa do seu possuidor, por causa daquele W flamular, que não se pronunciava com um sopro suave, à inglesa, como nos ensinava o Dr. Eufrásio nas aulas de Inglês (assim em well, wonder, woman, com a boca como quem beija), mas antes como V, com agressividade tudesca, como se devia vociferar no antigo frâncico “werra” (guerra), ou, então, na Alemanha de Hitler, “Wehrmacht”; e também devido ao radical “stein” (pedra), que se pronuncia “xtaine” e me soava como um golpe de montante nas mãos de um hercúleo soldado franco do tempo das Cruzadas rachando um sarraceno de alto a baixo.
Do Valene ou Valine no liceu (assim se lhe abreviava o apelido germânico), lembro-me principalmente quando ele já frequentava o Curso Complementar de Letras, acho que no ano seguinte ao da extinção do Girassol. Recordo-o na sua corpulência já então notória, passando nos corredores a caminho das aulas, sempre com livros debaixo do braço, pesadamente, intelectualmente, olhando de cima da sua importância precoce a frandulagem que fervilhava à volta, ele distante, nubívago, sobranceiro, como uma potestade.
Uma razão havia para aquela prosápia (isto, se a culpa da imponência do seu porte não devia antes ser imputada aos genes germânicos que lhe haviam talhado a carrure de halterofilista, uma razão, pensava eu, que lhe dava jus a sentir-se acima da arraia miúda que lhe pisava cá em baixo a redondez da sombra: Era o facto de os seus versos já circularem nessa altura impressos nos jornais da cidade. Nos jornais da cidade, não sei se tanto assim; mas, e mais importante, num deles: A Ilha. Este jornal tinha começado diário em 1939, um ano antes do Girassol, dirigido pelo nosso professor Agnelo Casimiro já aqui citado, mas pouco depois passara a sair apenas uma vez por semana, subintitulado “semanário cultural informativo”, sob a direcção do jornalista José Barbosa, também poeta e escritor teatral.
Digo que era importante na altura ser colaborador de A Ilha, porque então (finais da 2ª Guerra Mundial, começos do Pós-guerra) aquele periódico estava a fazer História. Não a História da guerra e das suas sequelas no Mundo (de que ainda sofremos), mas História literária, como anda contada nos livros e em jornais e revistas, em Congressos, na Universidade. O Carlos Wallenstein entrou nessa História, assim como, pouco depois, a nossa tertúlia, mas então já tinha passado o tempo do Girassol…
(*) Investigador da linhagem do notável açoriano Brito Rebelo, de nome próprio Jacinto Inácio, tomado do seu padrinho de baptismo, o 1º Barão de Fonte Bela, que mandou construir o palácio onde viria a ser instalado o Liceu Antero de Quental.