JORGE, CANTADOR E CONTADOR
Sérgio da Costa Ramos
Jorge Coelho, como Villa-Lobos, é uma extensão do próprio violão, cuja anatomia curvilínea sempre foi submissa ao seu colo e sensível ao contato dos seus dedos.
O compositor festejado de Ilha – o segundo hino da Ilha de Santa Catarina – e de tantos outros sucessos, como Paixão Açoriana, Morena Tirana, Segura a Onda, Tosse de Orador, Saia no Dente, Furacão da Costeira, Indomável Prazer, Zimba, Sem, Açúcar, Sem Afeto, Perdido Amor, Gato por Lebre, Esse Piá e Roda Pião, entre dezenas de outras criações, Santa Catarina não só reconhece, como ama e cultiva.
O Jorge Coelho contador de histórias nós vamos conhecer agora.
Um Jorge telúrico, que vai às raízes da infância e da adolescência em Imbituba – sua Zimba querida – Laguna e Floripa, para de lá extrair casos e “causos” gravados no consciente e no inconsciente, “estórias” soltas, pastoreadas no cercadinho da memória e colocadas a pastar no ar livre do seu bom humor.
Há algo de felliniano nas lembranças de Jorge, revivendo seu “Amarcord” na Zimba em que o vento “Siroco” se chama “Teimoso” – um nordestão meio selvagem, que mexe com a psiquê das pessoas e torna inesquecíveis os seus verões.
Em Zimba nasce a criativa generosidade do menino Jorge, que convive em grande harmonia e tolerância com o caricato, o lado chapliniano da vida. É esse humor simples – mas nunca simplório – que torna cada uma das crônicas deste Triângulo das Bernunças um pequeno tratado de como levar a vida rindo da divina e humana comédia – “rindo dos outros, mas também sabendo rir de nós mesmos”.
Cascão, hilária, é crônica que daria comédia clássica de um Mario Monicelli, um Vitorio De Sicca, um Giuseppe Tornatore – o Tornatore de Cine Paradiso, talvez. Jorge Coelho também foi um Totó, garoto curioso que um dia se tornou, ele próprio, um criador de sucessos, sem deixar de colocar-se, ele mesmo, sob o olho indiscreto da câmera mergulhada em sua infância profunda.
O Jorge Coelho, criança, que transformou em comédia a bíblica liturgia do “lava-pés”, em Cascão.
Depois desse banho, descubra como a “raça” ludibriava o cobrador do “Imbituba-Laguna”, trem Maria Fumaça a bordo do qual as crianças de Zimba chegavam até a escola lagunense. O vai-e-vem da molecada tonteava o “guarda-trem”, que gostava de um “Undemberg”…
Sinta-se na erógena pele do autor de Nos tempos de secura, quando os coquetéis de testosterona remetiam os adolescentes aos altares de Onã, em tempo de descoberta de pecados.
Entre para a banda de Rock “The Hits”, e embarque num Ford A, 1929, a bordo do qual Jorge e seus blue caps abrilhantariam a soirée do Itapirubá Clube – em cujo tombadilho chegaram dispersos – e náufragos, com o “ônibus” da companhia no fundo do Oceano Atlântico.
Confira nos termômetros da Paixão Açoriana, a devoção do netinho Jorge à querida vovó Hermínia (que ele não conta, mas há de tê-lo salvo da medonha surra insinuada na crônica Cascão…), a quem o compositor dedica emotivo poema-canção – o contador cantando a sua história de duplo Édipo, para acalentar a memória de quem “era bendita, era bonita, tal como a Lua no Canto dos Araçás”.
Chacoalhe de rir, ao espiar por trás de um bambuzal, a frustrada Serenata em Capoeiras. Desastre completo: a musa a ser homenageada não só não estava em casa. Foi muito pior: chegou de carro com a família, “flagrando” os “serenautas”. E ainda trazia no braço um namorado oficial. Violão e versos jogados fora…
Si non é vero, é bene trovato e Jorge deixa claro que seus causos não precisam provar verossimilhança: “há causos que são verdadeiras pérolas. Quer sejam verídicos ou não, isso não tem a menor importância” – admite um Jorge confessional, em O Encanador.
Manezinho do “Triângulo Zimba-Laguna-Floripa”, o autor testemunha um bloco de sujos em Carnaval na Praça XV, autodenominado Contaminados pelo Cézio – pode?! – vai a um baile no Bola Preta do Rio, servindo de álibi para um tio boêmio, e até compõe para o carná de Floripa, por encomenda do mané Irê Silva. Uma marcha-rancho de indecoroso apelo: A Linguiça do Carlinho… Pode?!
No “Triângulo” do Jorge pode.
Até porque o cantador-contador de histórias toma o bem-humorado zelo de avisar bem na porta do livrinho:
– Nada aqui é para ser levado tão a sério.
Notas Biográficas:
SERGIO DA COSTA RAMOS: O mais festejado cronista da Ilha de Santa Catarina. Advogado e Jornalista. Escritor. Membro da Academia Catarinense de Letras. Ilhéu, nascido em Florianópolis. Brinda-nos,diariamente, com sua crônica no Diário Catarinense.
Da sua produção literária mais recente, destacam-se as obras: Sorrisos meio sacanas; O plano surreal; Rapsódias do mundo Bin – Ou não confia nem no carteiro;Costela de Adão – De um fiel às mulheres e a boa mesa e Duas Violas Arteiras (com Flávio Cardozo),Piloto de Bernunça.
sergiodacostaramos@diario.com
Paixão Açoriana(1997) foi seu primeiro CD. Segue-se: Zimba (1999),Farol dos Naufragados(2003) e a sair em breve Santa Terra. Recebe Prêmio Cultura Viva,Fundação Catarinense de Cultura,1997. Assina a trilha e faz a Direção Musical do curta metragem ILHA (2001), do diretor Zéca Pires, premiado no Festival de Cinema de Gramado(RS). Em 2005 se apresenta nos Açores à convite da Direção Regional das Comunidades e em 2006 participa na Ilha de São Miguel (Açores) do projeto “Construir Culturas” com artistas dos Açores,Estados Unidos,Canadá e Brasil, resultando na produção de um CD e livro.
Na sua estréia literária, o compositor talentoso se revela um delicioso contador de história, a sua e a dos outros desde a paradisíaca Imbituba.
Jorge Coelho é homenageado, por seus muitos amigos e admiradores por sua lealdade aos valores culturais telúricos, por sua paixão a sua terra Catarina e aos Açores,por sua grandeza humana, por sua Arte que encanta, pelo grande artista que todos reverenciam.
Crédito Imagens:
Capa: arte gráfica Mauro José Pereira – MAUZÉ;
Organização do livro: Berenice (Sell) e Luíz T. do Vale Pereira
Foto: Luíz T.do Vale Pereira